Paquistão – Socialismo ou barbarismo

Portuguese translation of Pakistan – Socialism or Barbarism.

O Paquistão é um país a que a famosa frase de Lenine “socialismo ou barbarismo” aplica-se verdadeiramente bem. A presente situação do Paquistão é caracterizada  por fundamental instabilidade. Desta fragilidade decorrem conflitos sociais e de classe, que nos anos vindouros podem mover o Paquistão para um lugar proeminente na agenda política.

Ao mesmo tempo, uma analise da situação paquistanesa diz respeito mais ou menos a todos os aspectos teóricos concebíveis do marxismo: à questão nacional, à guerra, à ditadura, ao estado, ao desenvolvimento combinado  e desigual, à revolução permanente, à questão feminina, ao imperialismo, à religião, às organizações de massa tradicionais etc.

Para entender a teoria, devem-se conhecer e compreender exemplos concretos. A teoria marxista é na realidade nada mais que as experiências acumuladas da classe trabalhadora – e o Paquistão é um bom exemplo de como a teoria fundamenta-se na realidade, e como é importante interpretar situações concretas e mostrar os caminhos a seguir. A teoria marxista não é invenção abstrata, mas oferece explanações concretas e compõe, em última análise, um guia para a ação.

No passado, a região que está hoje dividida entre a Índia, o Paquistão e o Bangladesh formava um grande “país” chamado Índia. Uma das primeiras civilizações na terra surgiu na área do fértil Indos, localizada próximo da fronteira entre a Índia e o Paquistão. A civilização que lá se formou era altamente avançada. Dispunha-se de ar-condicionado, de água corrente e de fontes nos palácios, instalações tão complicadas que mesmo hoje em dia não compreendemos como funcionavam. Com efeito, é  importante lembrar que todo este conjunto de recursos práticos se conseguia sem a utilização da eletricidade. É por este motivo que  a contradição hoje existente se  torna tão gritante, onde é possível ver o que o capitalismo foi capaz de gerar. Em contraposição a esta antiga civilização, o capitalismo criou um continente de esmagador atraso, onde água limpa e eletricidade são bens  escassos.

Colônia britânica

A fim de compreender a presente situação paquistanesa torna-se necessário conhecer um pouco da historia do subcontinente.

O primeiro navio britânico chegou às costas da Índia  em agosto de 1600 em busca de pimenta barata. Ao fim, a Companhia Britânica da Índia Oriental recebeu uma carta régia outorgada pela rainha Elizabeth I. O documento concedia à recém-criada  Companhia Britânica da Índia Oriental o monopólio de todo o comércio com a Índia Oriental Este acordo foi a base do desenvolvimento  do poderoso domínio colonial britânico no subcontinente.

A Índia nativa resistiu à colonização inglesa desde o começo. Todavia, a primeira resistência maior contra o domínio colonial britânico foi a Guerra da Independência da Índia em 1857. Da derrota dos hindus resultou a consolidação do domínio da potência colonizadora.

Os britânicos  reagiram manipulando as camadas superiores da população nativa para manter seu domínio. O exército inglês, por exemplo, contava em suas fileiras com muitos nativos hindus. A elite dirigente britânica recorreu à “boa e velha” estratégia de dividir para reinar, associada à brutal repressão com o objetivo de manter o controle da colônia.

A elite hindu educada pelos britânicos formou o Partido do Congresso em 1885. O Partido do Congresso é um partido burguês que empreendeu tão somente a luta burguesa de libertação. Entre alguns de seus mais conhecidos membros incluem-se o Mahatma  Gandhi  e Jawaharhal Nehru. Mesmo que o partido tenha lutado contra o domínio imperial não evitou sua cooperação com os britânicos em vários momentos, como por exemplo quando se uniram na luta contra a ameaça do “bolchevismo”.  

Gandhi e suas táticas de “não-violência” simbolizam ponderavelmente, hoje,  o movimento de liberação. Mas, examinando-se este expediente  de perto, vê-se que  simplesmente não funcionava e era hipócrita. De efeito, significou que os trabalhadores hindus permitiram que eles mesmos fossem trucidados na luta pela liberação, enquanto Gandhi e outros dirigentes eram deixados à vontade em suas negociações com a potência dominante.  A tática da ”não-violência” foi hipócrita porque não incluiu a não-violência em relação aos revolucionários – visivelmente as mãos dos britânicos ficaram livres para recorrerem ao emprego da violência contra eles. A tática da “não-violência” era um meio de arrefecer  a luta de libertação e desviar o ânimo revolucionário  do povo hindu. No final, não foi  a ameaça da “não-violência” que forçou os britânicos a deixarem a Índia mas, na verdade, neste sentido operou a ameaça de um movimento genuinamente revolucionário.

Ambos, britânicos e dirigentes locais,  temiam que a luta nacional  de liberação se transformasse em levante revolucionário. Uma definida divisão de classe estava-se desenvolvendo dentro do movimento de liberação nacional. A dinâmica revolucionária desenvolvia-se a tal ponto que a liderança burguesa temia dela perder o controle. O ponto decisivo surgiu com a Revolução Russa de 19l7. Os soldados hindus na Europa durante a I Guerra Mundial foram influenciados pela Revolução e levaram suas experiências para a pátria.

Em 1946, uma situação revolucionária desenvolveu-se na Índia contra o domínio britânico. No mês de fevereiro daquele ano, aconteceu uma rebelião revolucionária dos marinheiros da marinha anglo-hindu. Este movimento dos marinheiros hindus atemorizou os britânicos e forçou-os a finalmente deixarem a Índia ao temor de uma genuína revolução socialista.

Muçulmanos, hindus e sikhs(a) lutaram ombro a ombro em 1946 em barricadas e nas ruas, unidos sob a bandeira vermelha. No entanto, ao movimento revolucionário faltou uma liderança que o teria conduzido para a vitória. Ao invés de tê-lo levado à meta perseguida, a liderança do Partido Comunista da Índia (PCI) traiu o movimento  sob a influência da União Soviética. O PCI foi fundado em 1925, e congregou em seu seio diferentes alas de esquerda de toda a Índia. O partido era, política e ideologicamente, confuso, de  coloração fortemente nacionalista.  Postava-se contra os trabalhadores à frente do movimento de liberação nacional. Nos períodos de 1919-1922 e 1926-1927, o Partido liderou expressivas insurreições, o que lhe proporcionou base popular. Com o desenvolvimento do stalinismo e sua influência, o Partido degenerou, mas mesmo assim permaneceu uma organização de massas. O Partido Comunista da Índia traiu as massas durante a II Guerra Mundial. Quando foi rompido o pacto Hitler-Stalin(b), os  partidos  de repente admitiram respaldar os Aliados. Na Índia, isto significou que o Partido Comunista apoiou  os britânicos, contra  quem eles há pouco tinha estado a lutar, e contra quem as massas se batiam pela independência! O Partido Comunista da Índia perdeu bastante credibilidade ao apoiar os odiados dirigentes coloniais.

Os dirigentes britânicos necessitavam, por um lado, evitar a revolução e, por outro, a anarquia. Eles desejavam manter o sistema colonial através do qual  auferiam vultosos lucros. Por este motivo, sugeriram a partilha da Índia, porque não podiam manter o controle de toda a região e seus lucros estavam em jogo.

No fim, tanto o Partido do Congresso quando a Liga Muçulmana(c) concordaram com a idéia da partilha do subcontinente hindu, a fim de evitar-se uma revolução socialista. O subcontinente foi prontamente dividido entre a Índia, o Paquistão do leste - hoje o Bangladesh - e o Paquistão ocidental.

Ambos, o Partido do Congresso e a Liga Muçulmana© representaram diferentes  setores da elite dominante. O líder da Liga Muçulmana - partido  representante da aristocracia muçulmana - era Jinnah(d) , que realmente não pretendia criar um estado muçulmano na Índia,  mas conseguir sua fatia do poder. Comprovou-se que a divisão da Índia  foi o melhor instrumento para isto.

Os britânicos deixaram a Índia em 15 de agosto de 1947. Um dia antes, em 14 de agosto, foi proclamada a fundação do Paquistão.

A divisão da Índia resultou num terrível banho de sangue. Milhares de anos de coexistência pacífica entre gentes de diferentes religiões foram esmagados de um dia ara o outro. Este foi o caso particular na fronteira entre a Índia e o Paquistão (Punjab). Pessoas de diferentes religiões matavam-se, torturavam uns aos outro, e mulheres eram violadas. Gente velha ou jovem, era morta nas ruas. Trens que cruzavam as recém-estabelecidas fronteiras eram atacados. Muita gente teve de pegar seus bens e mudar-se para outros lugares. Era em sua maioria analfabeta, que nem ao menos se interessava pelo Partido do Congresso ou pela Liga Muçulmana. Milhões foram mortos – conforme Lal Khan escreve em Partition Can be undone? (A diisão pode ser desfeita?). Mais ou menos metade desse número de hindus perdeu a vida numa matança equivalente à metade das perdas americanas em quatro anos de luta na Segunda Guerra Mundial.

A divisão da Índia representou um dos acontecimentos mais contra-revolucionários e sangrentos da história recente.

Paquistão -  um estado burguês?

O dirigente da Liga Muçulmana, Jinnah pretendia criar um  poderoso estado capitalista no Paquistão. Ocorreram, todavia, conflitos internos no seio da elite desde o início. O sucessor de Jinnah, Liaqat Ali(e) foi assassinado em 1951, apenas quatro dias após a fundação do Paquistão.

Hoje, o Paquistão é um estado religioso, onde permanecem muitas das hierarquias estabelecidas pelos britânicos. É incrivelmente dividido, lingüística e culturalmente, do que resulta ser ainda o inglês a língua oficial, mesmo que muitos paquistaneses não o falem ou escrevam.

A burguesia paquistanesa era tão débil que não pôde adotar uma constituição na primeira década de formação do estado. E somente após 23 anos de existência, em 1970, é que eleições regulares aconteceram. Isto demonstra que a burguesia paquistanesa, à semelhança das burguesias nos demais paises ex-coloniais, é completamente incapaz de desempenhar um papel progressista e impulsionar a sociedade. Não podem essas burguesias nem ao menos empreender as tarefas históricas, nacionais e  democráticas, de uma burguesia. Em sua curta história de 60 anos, no Paquistão ocorreram 4 sucessivos golpes militares.

O primeiro golpe militar aconteceu em 1958  - 11 anos após a formação do país. Foi conduzido por Ayub Khan(f) e permaneceu no poder até 1969, quando uma onda revolucionária o afastou. De 1968 a 1969 o proletariado paquistanês entrou na arena da história, tomando seu destino nas próprias mãos e palmilhando o caminho da revolução.

A revolução colocou o poder nas mãos das massas paquistanesas. Foi uma onda revolucionária surpreendente que durou 138 dias. A vaga  revolucionária  desencadeou-se com um pequeno incidente: a morte de um estudante que protestava. A origem da revolução era mais profunda. O Paquistão foi capaz de desenvolver-se de alguma forma no período após a divisão, graças à expansão econômica acelerada do Ocidente (1948-1973). Contudo, em lugar de resolver as contradições da sociedade paquistanesa, o desenvolvimento serviu para aprofundá-las. Esta contradição entre o desenvolvimento da indústria e com ele o do proletariado e a falta de um desenvolvimento social correspondente, levaram à irrupção revolucionária de 1968 e 1969.

Sem uma liderança revolucionária, o movimento  dividiu-se em facções nacionais. Isto gerou uma guerra civil e a formação do Bangladesh em 1971. Após a humilhante derrota sofrida pelo exército paquistanês no Paquistão Oriental (Bangladesh), nova situação revolucionária desenvolveu-se. O regime foi forçado a adotar algumas reformas com o objetivo de encaminhar a revolução por canais seguros. Contudo, o movimento teve êxito em derrubar o ditador Khan, que passou o poder para o exército.

O primeiro governo eleito no Paquistão representava um produto secundário  da revolução. O Partido do Povo Paquistanês (PPP) colocou este governo sob a liderança de Zulfiqar Ali  Bhutto(g) ministro do exterior no governo de Khan. O PPP foi criado precisamente em conseqüência da onda revolucionária de 1968-69 e adotou um programa muito avançado. Bhutto desenvolveu um programa socialista radical em resposta à pressão das massas populares. Seu governo empreendeu amplas nacionalizações, mas ao mesmo tempo implantou uma contra-revolução de feições democráticas, onde o sistema capitalista foi   preservado com todas falhas e  erros. Este fato implicou numa crise econômica. Em 1977, Zia-Ul-Hak(h) deu outro golpe militar. Bhutto foi aprisionado e executado em 1979. Enquanto estava  na prisão aguardando a execução, Bhutto escreveu que seu maior erro fora pensar que um meio caminho entre as classes era possível – explicando ele haver compreendido  que uma das classes deve prevalecer. Em If I am Assassinated (Se eu for assassinado), Bhutto escreveu:

“Estou passando por esta provação  porque busquei uma via media de interesses em conflito com o propósito de  harmonizar nossa estrutura desarticulada. Parece que a lição deste golpe de estado é que a via media, um modus vivendi, um compromisso não passa de um sonho utópico. O golpe de estado demonstra que a luta de classes é irreconciliável  e dela deve resultar a vitória de uma classe sobre a outra. Obviamente, quaisquer que sejam os contratempos passageiros, a luta pode unicamente resultar na vitória de uma classe.”

A brutal ditadura de Zia foi aproveitada pelos Estados Unidos como um anteparo em toda a região. A ditadura prolongou-se em razão do crescimento econômico. Todavia, Zia obcecado pelo poder foi muito longe, até mesmo em relação aos Estados Unidos. Em 1988, foi morto num desastre de avião organizado pela CIA.

Lá para o fim da ditadura de Zia, iniciou-se um movimento que culminou no retorno ao Paquistão em 1968 de Benazir Bhutto(i) – filha do anterior presidente Zulfiqar Ali Bhutto e líder do PPP. Ela conseguiu descaminhar o movimento revolucionário adotando certas reformas.

A volta de Benazir Bhutto foi seguida por alguns anos de “democracia” sem que o exército afrouxasse suas garras do poder. Houve sete governos durante este período, nenhum dos quais foi capaz de  completar seu termo na direção do país. O domínio militar mais uma vez instalou-se no Paquistão em 12 de outubro de 1999,  sob a liderança do general Musharraf.

O  golpe de Musharraf foi efetivamente um contragolpe contra o presidente anterior Nawaz Sharif que, por motivo de intensa crise do regime, tentou usurpar mais poder. O descontentamento aumentava dentro do exército após uma derrota na Caxemira, que terminou em humilhante retirada do Paquistão sob pressão dos Estados Unidos. Sharif tentou livrar-se de Musharraf, do que quase resultou uma guerra civil.  No final, isto nunca se materializou pois Musharraf tomou o poder. O general Musharraf é atualmente o “presidente” do Paquistão. Mais tarde voltaremos a enfocá-lo.

Barbarismo

Essa situação traz-nos ao presente. O Paquistão é um país rico em história,  em cultura e em recursos naturais. Todavia, sua população vive em estado de miséria, e o capitalismo não foi capaz de proporcionar  qualquer progresso para seus cidadãos.

A situação das massas paquistanesas é absolutamente horrível. Enquanto as elites vivem no luxo e em palácios, a vasta maioria da população vegeta  na pobreza. A economia do Paquistão está arruinada. A taxa de crescimento era de 6,5% nos anos 1980s e caiu para aproximadamente 4,1 % na segunda metade da década de 1990. Por volta do ano 2000 ela caíra para cerca de 3%. A taxa de crescimento tem se recuperado um pouco, e agora se situa em torno de 6.4%  – a mais alta em dez anos – contudo sem repercussão no desenvolvimento social. O desemprego dobrou nos anos 1990s e a pobreza  cresce. 42% da população vive oficialmente abaixo do nível de pobreza, mas de acordo com o órgão de pesquisas Economic Survey Pakistan quase toda população mantém-se na pobreza. Nos 11 anos de “democracia” mais de 22% da população desceram para um nível inferior ao da pobreza. O setor da saúde declina  e a maioria da população deve recorrer à assistência  médica privada, e grande parte vê-se forçada a procurar a ajuda de charlatões.

Apenas 22% da população têm acesso à água potável, e 15%, a instalações sanitárias. Menos de 50% alcançam o primeiro nível de educação, e menos de l,5% dos estudantes têm acesso a universidade. Enquanto isto, o governo continua a privatizar o ensino. Isto significa que a educação e a saúde tornaram-se supérfluas, enquanto a população luta por um mínimo de subsistência. De acordo com a Organização Mundial da Saúde, a assistência médica e o saneamento básico na Índia eram melhores em 1857 do que nos anos 80 do século XX.

A venda de órgãos humanos a indivíduos ricos ocidentais tem aparecido na mídia do Ocidente e revela o nível de barbarismo corrente no Paquistão. Cidadãos ocidentais abastados em busca de um órgão podem encaminhar-se ao Paquistão e comprar um novo rim, onde pobres em desespero vendem as únicas coisas que possuem - partes de seus próprios  corpos. A extensão da degenerescência pode-se ver no aumento das práticas de magia negra e de curandeirismo. Enquanto o país afunda na miséria e no barbarismo, recursos enormes são dilapidados em atividades  bélicas,  inclusive no Afeganistão. A situação das massas paquistanesas agrava-se, a exemplo do que igualmente ocorre noutros paises em desenvolvimento.

A situação das mulheres

A questão da mulher é parte importante de um programa socialista, especialmente num país como o Paquistão. Contudo tal matéria serve para  complicar a questão. Também testemunhamos a opressão das mulheres em países como a Dinamarca, porém de forma mais sutil. No Paquistão, a opressão da mulher é muito mais evidente – é mais severa e sobremaneira clara. Zia-Ul-Hak introduziu a Hudood-ordinance (leis religiosas) durante sua ditadura. Até mesmo Benazir Bhutto revelou-se incapaz de abolir essas leis quando subiu à presidência, porque elas constituem  parte inseparável da atual  sociedade.

As mulheres são consideradas propriedade do homem, seja no cuidado de seu pai, seja nas obrigações  em relação ao marido. As mulheres paquistanesas nem ao menos podem sair de casa sem permissão marital ou paterna, muito menos podem viver por si sós. Para as mulheres do Paquistão, parece-lhes utópico poder levar sua própria vida em seu apartamento, o que é comum no ocidente.  Também lhe é impossível tomar decisões por sua própria conta.

No Paquistão viola-se uma mulher a cada três horas –o que representa apenas a ponta do iceberg. Se uma mulher que é estuprada e leva a ofensa à justiça corre o risco de terminar ela mesma na prisão, onde 43% delas são novamente violadas. Para comprovar um estupro, a mulher tem de dispor de quatro testemunhas masculinas. A mulher não pode testemunhar nos casos de seu próprio estupro.

A “honra” representa muito na vida familiar paquistanesa. Muitas mulheres são mortas em nome da honra familial. Ao lado de assassinatos, muitas mulheres enfrentam agressões perversas e violentas. Todavia, o assassinato e a violação em nome da honra conduzem à questão da terra, do pão e da água – somente as mulheres mais pobres estão sujeitas a estas mortes por questão de honra. Aqui podemos ver a total degenerescência num país que é oficialmente religioso e ostenta um código moral severo, não se admitindo o uso de bebidas alcoólicas, nem sexo pré-marital etc. O comportamento nada tem a ver com os valores éticos oficiais, mas, pelo contrário, diz sobejo respeito às condições de existência. É sempre a degradação social levando à decadência moral.

Da forma que no ocidente há muitas diferentes sugestões para solucionar-se a questão paquistanesa – há número equivalente de feministas. Como no ocidente, há uma patente divisão de classes no enfoque desta questão. Existem muitas organizações não-governamentais lutando contra a opressão das mulheres. O problema principal é que elas acreditam que se possa encontrar a solução nos limites do sistema. Toda a história do Paquistão mostra que isto é impossível. A despeito da presidência de Benazir Bhutto, uma mulher, a opressão ainda existe. Hoje há muitas mulheres no parlamento paquistanês, algumas delas são membros dos partidos fundamentalistas mantenedores da opressão. O direito do voto feminino, o direito ao aborto etc. constituem importantes pontos de sua pauta de reivindicações. Entretanto, essas lutas não resolvem os problemas fundamentais de maneira alguma ou abordam as raízes da opressão feminina. O único meio de  abolir a opressão é o socialismo, que abolirá a um só tempo a opressão do homem e da mulher através da luta comum dos trabalhadores de ambos os sexos  contra os preconceitos e os problemas da vida cotidiana.

Caxemira – a praga

Quando os dominadores britânicos deixaram a Índia, não deixaram tão-somente uma Índia dividida, mas também uma abertura para um eterno conflito: a Caxemira. Uma batalha por esta área do subcontinente tem continuado nos últimos 60 anos por muitos altos e baixos. Milhares e milhares de indivíduos foram mortos.

Os muçulmanos constituem a maioria da população da Caxemira. Em 1972 Indira Gandhi e Zullfiqar Bhutto  assinaram um acordo que dividia a Caxemira, passando quase 2/3 da área para a Índia. Uma linha de controle foi estabelecida como limite temporário, mas desde então não se fez nenhuma alteração.

A Caxemira constituiu-se em permanente fonte de conflito. Em alguns períodos, os antagonismos exacerbam-se, em outros, há negociações de paz, como no presente. A Caxemira não apenas reclamou uma porção de vidas humanas, mas também perdura uma praga ao mesmo tempo para os povos da Caxemira, do Paquistão e da Índia. O conflito tem sido usado pela elite dirigente britânica e, hoje, pelas elites dominantes paquistanesas e hindus como instrumento da estratégia “dividir e reinar”.

Desde a partilha, houve três guerras entre a Índia e o Paquistão, e o ponto central destes conflitos tem sido a Caxemira. As massas desta região permanecem exploradas e oprimidas,  tanto pela Índia quanto pelo Paquistão. A Caxemira está em perigo porque o conflito é conveniente para as partes nele envolvidas. É a um só tempo conveniente aos fundamentalistas fanáticos que criaram uma saída para a pobreza, i.e. através do comércio de armas. Também é apoiado pela CIA e agora pelo ISI (serviço de inteligência paquistanês). Da mesma forma é conveniente para as classes dirigentes do Paquistão e da Índia.  Se o descontentamento aumenta e foge ao controle, o simples  acirramento  das paixões em jogo torna-se oportuno como expediente diversionista. A ameaça de guerra e a “defesa da nação” todo o tempo têm sido meios para deter o descontentamento interno e reprimir os movimentos operários.

A Caxemira é uma das razões por que o Paquistão existe – sem a Caxemira os generais não poderiam justificar o fato de consumirem mais de 1/3 do orçamento nacional!

O conflito da Caxemira transforma-se em real ameaça para as classes dirigentes de todo o subcontinente. Este conflito poderia destroçar ambas as sociedades e também destruir os interesses das próprias elites dominantes. Aproximadamente há dois anos, os tambores da guerra rufaram. O menor incidente poderia reacender as chamas da guerra. No momento, os fautores de guerra acalmaram-se, e agora os dois paises disputam partidas de críquete juntos numa demonstração da propalada “amizade”!

Certas facções da elite hindu desejam destruir completamente o Paquistão sem nenhuma preocupação pelas catastróficas conseqüências. Desta forma, a existência do Paquistão vê-se ameaçada por uma guerra. Ambos paises dispõem de grandes forças militares – a Índia tem as maiores – e também possuem artefatos nucleares que podiam matar milhares, talvez milhões de   indivíduos. Uma guerra convencional podia muito bem descambar para uma guerra nuclear, implicando em centenas de milhares de mortes. Os imperialistas desesperadamente  tentam evitar isto, mas eles próprios criaram o atual estado de tensões.

A despeito do fato que a opressão da mulher e o conflito na Caxemira parecerem ter uma contextura completamente diversa, a raiz do problema e sua solução, é uma só. Os dois problemas têm suas origens no capitalismo e ambos são usados pelas elites dirigentes para dividirem os trabalhadores e a unidade das massas oprimidas.

Desde que aconteceu a partição, diferentes modelos têm sido propostos para o conflito da Caxemira por toda espécie gente:

1.    Que o status quo seja mantido, e a presente linha divisória seja reconhecida como fronteira internacional. O povo da Caxemira não pode aceitar tal  solução.

2.    Que a Índia  lance um ataque frontal e tome a Caxemira – medida esta que provocaria  um conflito  por toda linha fronteiriça Paquistão-Índia,  podendo destruir as duas nações.

3.    Dividir a Caxemira em três partes, numa ficaria a maioria muçulmana para Paquistão, outra, com maioria hindu, pertenceria à Índia, e uma região autônoma. Este modelo é integralmente reacionário  como os demais – um  bom exemplo a que isto pode levar é o da ex-Iugoslávia e seus conseqüentes e intermináveis conflitos étnicos.

Como marxistas, apoiamos a autodeterminação. Mas isto não significa que em todos os casos apoiemos a formação  de nações independentes. A Caxemira é um estado excessivamente pobre e não pode constituir-se em nação livre e próspera. Uma Caxemira independente seria dominada pelo Paquistão e pela Índia enquanto o capitalismo prevalecesse.

A única solução para a Caxemira é uma Federação Socialista do Paquistão, da Índia e da Caxemira - só desta maneira podem-se assegurar o progresso  econômico  e a paz na região. As elites dirigentes, tanto no Paquistão quanto na Índia, não podem assegurar nem a guerra nem a paz, e por este motivo a situação instável durará enquanto o capitalismo e a opressão perdurarem no continente.

Perspectivas

O presente regime no Paquistão é extremamente débil. O estado é dividido. Isto quer dizer que por um lado  o presidente Musharraf é muito fraco, mas, por outro, significa a mais dura opressão, a fim de que possa manter as rédeas do poder.

Em abril de 2002 Musharraf convocou eleições parlamentares com o propósito de que seu regime adquirisse aparência democrática. Não havia muita dúvida que Musharraf ganharia as eleições, e assim aconteceu. O pleito eleitoral foi intensamente fraudado, e amplo setor da oposição foi subornado antes e depois das eleições. No período final houve três tentativas de assassinato de Musharraf, todos oriundos da própria esfera do poder. O fato demonstra que o regime está extremamente dividido e que facilmente pode sobrevir uma secessão  declarada entre suas várias facções.

O ISI foi fundado e treinado pela CIA. Mas o ISI agora se voltou contra o imperialismo americano. A CIA  controlou o Paquistão em 1950, nos anos 1960, e nas décadas de 1960 e de 1970 através de seu envolvimento nos conflitos do Afeganistão. Não obstante, na década de 1980, após a guerra afegã, o exército se tornou mais islâmico.

a guerra no Afeganistão desempenhou apreciável papel na criação de divisões no regime. Algumas de suas seções, as por trás de Musharraf, por exemplo,  obedecem aos ditames do imperialismo americano numa tentativa de manterem-se em termos amigáveis, enquanto outras, inclusive o ISI, apóiam os fundamentalistas no Afeganistão.

Acerca de um ano, os Estados Unidos pediram ao exército paquistanês que se deslocasse para a região fronteiriça do Afeganistão – a “região fronteiriça do nordeste”, uma região mais ou menos controlada por diferentes lideranças  tribais. Nem os britânicos durante seu domínio colonial, nem o exército paquistanês  puderam controlar a área por completo.  O exército Paquistão não obteve sucesso no presente ataque; na verdade, perdeu muitos soldados e o poder central ficou mais dividido.

Musharraf tem mantido estreita aliança com os Estados Unidos e aplica todas as diretrizes do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial. Neste aspecto, podemos claramente divisar a hipocrisia da “democracia” americana.  Quando lhe convém, faz alianças com ditadores. Musharraf está sob pressão de todos os lados. Tanto da parte dos fundamentalistas islâmicos quanto do lado imperialista. Seu regime é extremamente frágil e a qualquer momento cairá. O que resultará depende de muitos fatores, o primeiro dos quais é o equilíbrio do poder entre as classes, e também entre os fundamentalistas e o das  marionetes do imperialismo.

A única saída

Possível resultado da instabilidade no Paquistão poderá ser a emergência de nova ditadura militar, que poderia ser ainda mais brutal do que a  de Musharraf. Das divisões no país poderia surgir uma guerra civil, de conseqüências catastróficas. Mas é também certo que sob a superfície da sociedade paquistanesa a insatisfação atinge o ponto de ebulição entre as massas, descontentamento que em algum momento pode explodir. A mídia ocidental noticia que o fundamentalismo religioso ganha terreno. Mas isto não é de todo verdadeiro. É um fato que os fundamentalistas têm sabido ganhar algum apoio por causa de seus slogans antiimperialistas. Mas é um arrimo por demais instável.  Onde ganharam o poder seu apoio tem declinado quando se revelam suas verdadeiras políticas. A principal razão por que os fundamentalistas puderam ganhar algum apoio foi por falta de uma real alternativa à esquerda. O apoio temporário ao fundamentalismo não quer dizer que a sociedade assumiu decidida reviravolta para a direita, mas que a sociedade paquistanesa entrou num período de instabilidade política. Exemplo disto foram as eleições hindus de maio de 2004 em que os partidos comunistas receberam votação maciça, não obstante sua completa degenerescência. Estas agremiações há longo tempo abandonaram políticas revolucionárias e abraçaram o reformismo.

É inteiramente possível que o regime de Musharraf se arruíne e o  imperialismo mais uma vez tente usar o PPP para manter o domínio burguês controlável. Benazir Bhutto,  ainda na liderança do PPP, viveu exilada na Grã-Bretanha. Retornou para o Paquistão em 1986 a fim de atuar à guisa de válvula de segurança para o imperialismo desviando a revolução de seu rumo. Tal coisa pode novamente acontecer. O PPP não é estático, fixo e absoluto. À semelhança de todos os partidos e movimentos políticos, em seu interior debatem-se várias correntes políticas. É possível que Bhutto assuma compromissos com Musharraf, algo que no final implicaria numa divisão do PPP. O PPP liderou a onda revolucionária de 1968-1969. É perfeitamente possível que a liderança de nova onda revolucionária possa surgir das fileiras do PPP. O Paquistão é apresentado como um país dirigido pelo Islã. Não obstante, o Paquistão conta com uma classe trabalhadora ciosa de suas tradições. O fundamentalismo religioso somente crescerá e ganhará influência se esta classe for batida e não surgir alternativa.

A validade da teoria da revolução permanente de Trotsky pode ser vista claramente nesta região do mundo; a burguesia nacional e o imperialismo nunca puderam resolver qualquer problema de interesse das massas laboriosas. Não foram capazes de concluir as tarefas fundamentais da revolução democrática nacional – não há, de fato, “democracia burguesa funcionando”, não tem havido melhoria nas condições de vida das massas etc. Longe de resolverem os problemas do Paquistão, a burguesia e seus aliados imperialistas têm criado outros.

A única forma de avançar é uma revolução socialista. Em alguns aspectos, o Paquistão pode comparar-se à Rússia de 1917. O tamanho da população paquistanesa hoje é similar ao da Rússia 90 anos atrás, e o Paquistão é hoje, portanto, semelhante à Rússia de então: um dos mais reacionários regimes do planeta e assim por diante. Como na Rússia daquela época, as tarefas da iminente revolução só poderiam ser resolvidas através de uma revolução socialista – revolução onde a classe trabalhadora assuma o controle da produção e democraticamente  planeje a economia.  

Como na  Rússia, a lei do desenvolvimento desigual e combinado opera no Paquistão. Gráfico completo desta lei vê-se quando se viaja do Lahore a Islamabad. À medida que se percorre uma das mais modernas rodovias do mundo, podem-se observar fábricas movidas por mão de obra escrava ao lado da estrada, nas quais os trabalhadores são mantidos em servidão vitalícia. O desenvolvimento  desigual e ao mesmo tempo combinado, cria uma situação social explosiva, podendo colocar outra vez esta região do mundo à vanguarda do desenvolvimento humano.

Contudo, é igualmente óbvio, tanto quanto na Rússia, que um país atrasado tal e qual o Paquistão não pode desenvolver o socialismo só e isoladamente. Aliás, nenhum país pode fazê-lo. O exemplo da União Soviética expôs e destroçou a teoria do “socialismo  num só país” (j). Um estado de trabalhadores paquistanês isolado, não obstante representasse imenso passo avante para as massas e a classe trabalhadora, enfrentaria enormes dificuldades, tornando, neste caso, o desenvolvimento saudável da revolução impossível. Uma revolução socialista no Paquistão teria grandioso impacto em todo o subcontinente hindu. A primeira tarefa dos trabalhadores paquistaneses seria a de estender a revolução para a Índia e o resto da Ásia, como um passo na senda  para o socialismo mundial.

A despeito dos limitados meios de comunicação em 1917, a revolução russa ecoou vigorosamente entre os trabalhadores de todo o mundo e desempenhou decisivo impacto na história mundial. Uma revolução socialista com sucesso em nossos dias, em qualquer parte do mundo, teria um efeito ainda maior. É dever dos socialistas de todo mundo seguir o progresso dos movimentos revolucionários e ativamente lutar para assegurar o êxito da revolução – não apenas no Paquistão, mas  também  em todo o mundo.

Grandes partes deste artigo  baseiam-se em fatos expostos no livro o “Partition” escrito por um dos proeminentes marxistas paquistaneses, o camarada Lal Khan. Para mais informações queira acessar o Wellred website.

Obs. Tradução de Odon Porto de Almeida

N.do trad. (a) –  O termo sikh na língua hindi  significa discípulo. Religião criada pelo reformador Nának (1469-1538), cuja pretensão era unir hindus e muçulmanos numa só religião monoteísta. Seu livro sagrado é o Granth Sahid. Conta com aproximadamente 14 milhões de adeptos. Seu templo principal fica em Amritsar( Índia). Em resposta à opressão muçulmana, os sikhs, originariamente pacifistas, tornaram-se guerreiros destemidos. Em 1980  criaram seu próprio partido político, com uma ala extremista.

(b) Assinado em 23 de agosto de 1939 por von Ribbentrop e Molotov, ministros do exterior da Alemanha e da URSS, respectivamente.  Para todos os efeitos, em sua breve vigência teve conseqüências por demais desastrosas, tanto para o movimento comunista mundial quanto para a própria URSS. Ademais, abreviou o início da II Guerra Mundial.

(c) Fundada em 1906 por Aga Khan, já sinalizando o caminho para a divisão da Índia.

(d) Jinnah, Mohamed Ali (1847-1951). Político paquistanês.

(e) (1895-1951). Político paquistanês. Advogado, principal auxiliar de Mohamed Jinnah na direção da Liga Muçulmana. Considerado prudente e moderado, atraiu o ódio de grupos fanáticos que o assassinaram.

(f) (1907-1974). Político paquistanês. Oficial do exército britânico na Índia. A partir de 1947, serviu no exército do Paquistão. Assumiu o poder nesse país após a crise política de 1958. Realizou uma reforma agrária. De início aproximou-se politicamente do Ocidente  Aos poucos, porém,, tornou sua política externa mais independente, aproximando-se da URSS  e da China Popular.

(g)  (1928-1979). Político paquistanês, originário de uma família de grandes proprietários rurais. Advogado e ministro.dos negócios exteriores. Aproximou-se da China Popular, mantendo, entretanto, boas relações com os Estados Unidos.

(h) (1924-1988). Político e militar paquistanês. Em  1977  comandou um golpe de estado, quando era chefe do estado-maior. Ditador de 1978 a 1988 condenou Zulfikar  Ali Bhutto à morte.

(i) Nasceu em 1953. Primeira-ministra do Paquistão de 1988 a 1993.

(j)  Funesta aberração do cérebro de Stalin e de alguns de seus seguidores, contrariando o pensamento de eminentes marxistas como Lenine, Rosa de Luxemburgo, Trotsky e outros.

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