Hungria: grandes protestos contra a “lei dos escravos”

O primeiro-ministro húngaro de direita, Viktor Orbán, sofreu um golpe quando uma onda de protestos se espalhou pelo país. Os protestos foram desencadeados por uma nova legislação, rotulada como a “lei dos escravos”, que foi aprovada em 12 de dezembro. Esse ataque cruel aos trabalhadores húngaros permitirá que os empregadores aumentem a quantidade de horas extras, podendo exigir dos trabalhadores de 250 a 400 horas ao ano, o que equivale a aproximadamente oito horas por semana. Não apenas isso, também pode haver um atraso no pagamento dessas horas extras de até três anos.

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Mesmo antes de a lei ser aprovada, houve pequenos protestos em frente ao prédio do parlamento exigindo um aumento dos salários e que o governo reconsidere essa lei bárbara. Esses protestos aumentaram nos últimos cinco dias, culminando em uma manifestação de mais de 15.000 pessoas no domingo, 16 de dezembro, que marcharam até a sede da emissora estatal em Óbuda.

Enquanto isso, um punhado de parlamentares da oposição conseguiu entrar no prédio envolvendo-se em discussões acaloradas com a segurança, mas foram incapazes de convencer a estação de TV a permitir que as demandas dos manifestantes fossem apresentadas aos telespectadores ao vivo. Um desses legisladores, Ákos Hadházy, entrou na sede da radiodifusão estatal e, antes de ser contido agressivamente pela segurança, ouviu-se ele dizer: “Este é um bastião de seu poder… 80% das pessoas são informadas a partir do governo”.

As demandas dos parlamentares foram as seguintes:

  • Anulação da chamada lei dos escravos
  • Diminuição das horas extras exigidas para os policiais
  • O fim dos tribunais separados da Fidesz
  • Adesão da Hungria ao Gabinete da Procuradoria Europeia
  • Uma emissora estatal independente e não-partidária. A imediata demissão de Dániel Papp do comando da emissora estatal

Naturalmente, isso reflete o seu oportunismo e suas tentativas de, demagogicamente, sequestrar o movimento para os seus próprios e estreitos interesses. Portanto, suas demandas são naturalmente limitadas, mas revelam, de forma distorcida, que uma mudança está ocorrendo atualmente na Hungria. Entre as camadas urbanas mais amplas, a apatia do período anterior está se dissipando e um sentimento de otimismo está no ar. Ao atacar a classe trabalhadora, Orbán também a está agitando, obrigando-a a entrar na arena política. No entanto, a composição de classe desses protestos ainda é mista, com elementos da classe média e dos estudantes dominando. Isso se evidencia no número de bandeiras da União Europeia e da Hungria que se veem em meio à multidão. Os slogans são bastante chamativos, como “Orbán, dê o fora!

No entanto, agora os sindicatos estão começando a se mobilizar e não existe indicação de que o movimento chegue ao fim em breve. Portanto, o potencial que esses protestos contêm dentro deles é de um caráter muito mais forte do que aparentam atualmente. Isso acompanha uma tendência semelhante por toda a Europa do Leste, como a Albânia e a Lituânia, onde uma série de movimentos de protesto parece estar rompendo a antiga e calma superfície da vida política. “Sentimos que é a última oportunidade de deter a ditadura”, disse Márton Bartha, de 28 anos de idade, que esteve protestando na frente da sede da mídia estatal no domingo à noite. “Talvez ditadura seja uma palavra forte. Mas nossa liberdade está sendo reduzida”. Diferentemente de protestos anteriores, dessa vez a polícia demonstrou uma clara falta de moderação: foram utilizadas bombas de gás lacrimogêneo contra uma multidão de cerca de 2.000 pessoas na frente do parlamento, sem aviso. Claramente, isso mostra que o governo teme o que pode acontecer, talvez haja o medo de tumultos do tipo “coletes amarelos” em Budapeste. Zselyke Csáky, diretor de pesquisas da organização Freedom House, afirmou que:

“Antes, todos se comportavam muito bem. Mesmo as 50.000 pessoas que participaram dos protestos na Universidade Central Europeia no ano passado, o faziam numa atmosfera quase festiva. Dessa vez é diferente”.

Ainda não se sabe como terminarão esses protestos, mas o ânimo é de fortes críticas a Orbán e de vontade de lutar. “Eles não negociam com ninguém. Apenas fazem o que querem. Roubam tudo. É intolerável. Isso não pode continuar”, disse um manifestante, chamado Zoli, trabalhador do setor dos transportes.

Orbán tenta apertar o cerco

Apesar do clamor, sem nenhum esforço Orbán conseguiu impor essa lei por causa de sua supermaioria de dois terços no parlamento. A coalizão dominante de direita, FIDESZ-KDNP, é formada pelos velhos partidos, a Aliança Cívica Húngara (Fidesz) e o Partido do Povo Democrata-Cristão (KDNP), que participam em conjunto de todas as eleições desde 2006. Eles mantêm uma maioria dominante de mais de dois terços dos assentos desde sua primeira vitória eleitoral em 2010. Depois de promover reformas constitucionais controversas, incluindo o decréscimo do número de assentos parlamentares e a alteração das regras eleitorais, por duas vezes conquistaram supermaiorias de dois terços tanto nas eleições de 2014 quanto nas eleições de 2018, apesar de obterem menos de 50% do voto popular em ambas as ocasiões.

Não somente isso, na mesma sessão parlamentar que aprovou a “lei dos escravos”, outra lei contenciosa, que permite ao governo estabelecer novos tribunais administrativos, foi aprovada. Esses novos tribunais farão a supervisão de temas delicados como a lei eleitoral, os protestos e a corrupção. Como era de se esperar, o ministro da justiça, László Trócsányi, um aliado próximo a Orbán, supervisionará esses tribunais.

Esta é outra medida autoritária de Orbán para concentrar o poder em suas próprias mãos e nas de seus aliados mais próximos, como tem feito até agora através da supressão e da compra de meios de comunicação da oposição e do preenchimento de todas as posições políticas e judiciais com oligarcas e membros do partido Fidesz. Desde 2010, Orbán manobrou e alicerçou o seu poder. Tudo foi refeito, desde a reforma agrária, às reformas bancárias e à criação de um conselho da mídia não eleito e enigmático, que age como porta-voz do governo. Ele substituiu toda a oposição política que anteriormente ocupava posições de poder, bem como na pilhagem dos bens do Estado. Também escreveu uma constituição altamente reacionária, que foi codificada em 2011. O estabelecimento desses novos “tribunais administrativos” assinala mais uma adição à série de leis que alicerçam o governo autoritário de Orbán sobre o país. Como esperado, essas novas leis foram incrivelmente impopulares. A nova “lei dos escravos” é particularmente impopular. Ela atuou como um ponto focal para a ira geral, a privação de direitos e a frustração no país, particularmente na capital, Budapeste. Houve uma reação violenta e um ressentimento real, inclusive de partidários anteriores do governo. O Instituto Republikon, um grupo de especialistas liberais do país, divulgou uma pesquisa mostrando que até 63% dos apoiadores de Orbán desaprovam esta nova lei dos escravos, assim como 95% de seus críticos. Outro grupo de especialistas (Agenda Política) proporcionou dados semelhantes: afirmam que 83% dos húngaros se opõem à lei.

Numa resposta imediata à aprovação da lei, um pequeno grupo de aproximadamente 200 manifestantes saiu às ruas de Budapeste. Dentro da própria câmara parlamentar houve cenas de caos, enquanto os parlamentares da oposição soavam sirenes, assoviavam e confrontavam raivosamente os ministros do governo. Mas isso só mostra o seu desespero como minoria impotente. Até recorreram a cantar o hino nacional numa tentativa de adiar a votação, mas ela foi aprovada: de 30 a 52, com apenas uma abstenção.

Necessitamos uma alternativa

Como ficou evidente nos resultados patéticos das duas eleições anteriores, a oposição na Hungria se tornou totalmente impotente e fragmentada durante os últimos oito anos. O anteriormente dominante Partido Socialista Húngaro (MSZP) continua sendo o maior partido da oposição e o partido que lidera a chamada “esquerda”. Mas ele agiu como qualquer partido burguês, realizando a austeridade e supervisionando a privatização generalizada, que não trouxe nada além de miséria e sofrimento para as massas. De fato, o partido esteve sofrendo hemorragias desde seus dias de glória pós-1990. Aos olhos dos trabalhadores comuns, o partido se tornou completamente desacreditado, particularmente depois de seu desastroso governo entre 2006-2010, que o viu executar um programa de austeridade e formar uma minoria parlamentar com o então primeiro-ministro Gyurcsány; anunciando sua renúncia devido ao seu fracasso em administrar a crise econômica da recessão de 2008.

Não há nenhuma alternativa real no país e nenhum partido com um programa claro ou demandas que capturem o verdadeiro ânimo de raiva e desespero das massas. Assim, os muitos protestos e movimentos que ocorreram sob Orbán – notavelmente a greve dos professores que tomou conta do país em 2016 – não tiveram nenhuma liderança política que pudesse levar o movimento à frente e, finalmente, desafiar e expulsar Orbán. Com essa falta de uma saída política, essa energia foi repetidamente dissipada e o cansaço com essas derrotas causou uma apatia política generalizada. No entanto, a “lei dos escravos” mais uma vez provocou os trabalhadores, uma vez que esse ataque é brutal demais para ser tolerado. Os líderes sindicais assinalam que os húngaros já estão desconcertados com salários baixos e condições de trabalho precárias. “E agora, dar aos empregadores, em especial às empresas multinacionais que querem salários ainda menores, muito mais poder sobre os trabalhadores, é muito injusto”, diz László Kordás, líder da Confederação Sindical Húngara. A nova lei foi totalmente condenada por todos os partidos da oposição, reunindo facções diferentes e frequentemente rivais, junto a estudantes não-alinhados, jovens e outros na capital.

A resposta do governo reacionário

A resposta do governo foi típica e similar às respostas anteriores. Fantasmas xenofóbicos e antissemíticos foram conjurados como uma forma de desacreditar o movimento. O governo alega que o movimento faz parte de uma pequena conspiração de encrenqueiros centrada principalmente em torno do bilionário húngaro-estadunidense George Soros. Um porta-voz do governo, Zoltán Kovács, desvalorizou as manifestações dizendo: “Todos sabemos que não há nenhum apoio popular por trás do que está acontecendo”. Durante as eleições, na Primavera, Orbán afirmou que Soros estava por trás de uma conspiração para “inundar” a Europa com muçulmanos em busca de asilo. Fidesz, na verdade, divulgou uma declaração no sábado afirmando que era “cada vez mais óbvio que criminosos faziam parte dos motins de rua organizados pela rede de Soros”. Os aliados do primeiro-ministro também estão culpando Soros por organizar os protestos contra a lei das horas extras. O chefe de gabinete de Orbán, Gergely Gulyás, declarou que os manifestantes exibem um “aberto ódio anticristão”. Essa retórica é usada para estimular o apoio reacionário ao governo de Orbán, uma tática que ele repetidamente utilizou para dividir os trabalhadores e criar uma situação de medo histérico, de forma que ele possa continuar despojando os bens do estado e avançar uma legislação anti-trabalhadores.

Quando cerca de 400.000 pessoas viajaram através da Hungria em meio à crise migratória de 2015 a caminho da Europa Ocidental, Orbán ordenou que fossem colocadas cercas para detê-las. A Comissão Europeia então impôs uma cota obrigatória de asilo, mas o senhor Orbán se recusou a aceitá-la. Em 2015, 177.000 pessoas buscaram asilo na Hungria, mas somente umas poucas centenas foram aceitas. No ano passado, o número de solicitações de asilo caiu para aproximadamente 3.200. Devido a isso, o Parlamento Europeu votou em setembro para iniciar os chamados procedimentos do Artigo 7: um processo que poderia culminar em sanções, incluindo a perda do direito da Hungria de votar na União Europeia. No entanto, isso é altamente improvável, uma vez que a União Europeia é politicamente muito débil para impor tais sanções, especialmente porque o capital europeu está fluindo da Europa Ocidental para a Hungria para tirar vantagem dos salários relativamente baixos da Hungria.

Orbanomics

Este investimento na economia e o êxodo de trabalhadores qualificados da Hungria para outros estados-membros da União Europeia como a Alemanha, Áustria e Reino Unido, bem como a vasta maioria de sua força de trabalho não-qualificada sendo empurrada para o trabalho financiado pelo governo, em vez de receber o benefício do desemprego, significa que a taxa de desemprego da Hungria é artificialmente baixa: cerca de 3,7%. Isso está criando uma escassez de mão-de-obra no país, especialmente de trabalhadores qualificados. Orbán quer aumentar a produtividade, para superar a escassez de mão-de-obra, enquanto a manutenção do atrativo dos salários baixos na economia húngara foi o impulso para esses “salários de escravo”.

Embora a economia tenha crescido de forma constante, entre 1 -3%, durante os últimos anos, o que contraria a tendência de outras nações membros da União Europeia, isto é insustentável e não está claro quanto tempo pode durar. Além disso, mesmo aqueles trabalhadores, cujas condições de trabalho e salariais são semelhantes ou inferiores aos da Hungria, consideram o país pouco atrativo. Caso se mudassem para o exterior, eles escolheriam a Alemanha ou outros países da União Europeia, em vez do regime de Orbán, que é muito semelhante aos seu.

Defendendo a legislação, o governo disse à CNN que as “mudanças voluntárias no horário de trabalho” eram “no interesse dos trabalhadores” e permitiriam às pessoas trabalhar e ganhar mais. No entanto, os trabalhadores da Hungria não são tão facilmente enganados e podem ver nessa lei o que ela realmente é: um ataque contra sua classe.

O que vem a seguir para a Hungria?

As contradições de classe na Hungria são extremamente altas, as massas estão descontentes com suas condições, mas a ausência de qualquer liderança política na forma de um partido da classe trabalhadora ou de líderes sindicais audazes, freia a expressão política desse estado de ânimo. Assim, Orbán mantém a “paz” social através da ameaça de remoção dos subsídios às famílias pobres, a falsa ameaça de “inundação” de migrantes e a ameaça de colapso econômico. No entanto, os atuais protestos, que ainda estão em curso, aumentaram em número, locais e demandas. Começando com algumas poucas centenas, e logo alcançando alguns milhares, as manifestações mais recentes chegaram à casa de dezenas de milhares.

As seis maiores cidades do país se juntaram a Budapeste no último domingo e proporcionaram um ímpeto adicional à luta. Em Szeged, a única cidade da Hungria que permanece governada pelo chamado Partido Socialista, as pessoas ocuparam as ruas e os oradores incluíam não só políticos como também estudantes e líderes da classe trabalhadora. Por todo o país, as manifestações envolveram forças totalmente novas desde a queda do estalinismo ou que não participavam de protestos há muito tempo. Isso culminou na recente ameaça dos sindicatos de uma greve geral nacional, se o presidente ratificar a lei dos escravos já aprovada pelo parlamento.

Até onde os atuais protestos vão levar não está claro. Na ausência de um partido da classe trabalhadora, eles podem se dissipar ou ser desviados pelos políticos burgueses. No entanto, o que representam são sinais de mudança na consciência – um resultado dos acontecimentos recentes – e os primeiros estremecimentos das lutas de classe que estão por vir.

Do que claramente necessitamos agora é que esse descontentamento seja canalizado em demandas políticas e de um apelo para romper com o capitalismo. A Hungria tem uma forte tradição revolucionária de luta contra a opressão e seus lutadores merecem uma liderança que não se dobre ao reformismo ou que se deixe queimar pela fadiga e pelo fracasso. Somente as ideias do Marxismo podem produzir um programa que entusiasme as massas a levar adiante essa luta. O apelo de rompimento com o capitalismo e pelo estabelecimento do socialismo e de uma democracia genuína vibraria por todo o país. Nesse cenário, não apenas a camarilha mafiosa de Orbán e do Fidesz seria varrida, como também uma nova sociedade seria estabelecida, livre da exploração e da miséria da opressão de classe.