Comunicado da Corrente Marxista Internacional sobre o referendo da independência catalã

Nós publicamos aqui um comunicado da Corrente Marxista Internacional sobre a crise na Espanha. O referendo da independência catalã desafia o regime espanhol de 1978. Ele está sendo confrontado com um pesado aparato de repressão por parte do Estado espanhol. A CMI apoia o direito do povo catalão de autodeterminação. Por uma República Socialista Catalã como uma faísca para a revolução ibérica!

Por uma República Socialista Catalã como uma faísca para a revolução ibérica!

  1. A decisão do Parlamento[1] de convocar um referendo sobre a independência da Catalunha em 1º de outubro abriu a crise institucional mais séria na história da Espanha desde a restauração da democracia burguesa em 1977. A repressão do Estado espanhol e do governo de Rajoy desde Madrid provocou um movimento de massas nas ruas que adquiriu algumas características insurrecionais.
  2. O caminho rumo à convocação de um referendo acerca da autodeterminação se dá depois de anos em que o Estado espanhol e o governo de direita de Rajoy bloquearam qualquer intenção da Catalunha decidir sobre seu próprio futuro. O Estatuto Catalão de 2006, depois de ser minguado pelo parlamento espanhol, foi suspenso pelo Tribunal Constitucional sob as exortações do Partido Popular (PP)[2]. Por último, o Tribunal Constitucional declarou inconstitucionais alguns dos artigos chave do Estatuto. Trinta e cinco leis diferentes aprovadas no Parlamento Catalão foram também declaradas ilegais pelo Tribunal Constitucional.
  3. De 2011-2015, a Catalunha fez parte da onda de movimentos de massas contra os cortes e a austeridade, que questionaram todas as instituições da democracia burguesa na Espanha. Naquele momento, o partido burguês nacionalista Convergência e União (CiU)[3] estava no poder na Catalunha, com Artur Mas como presidente, sendo o mais entusiasta impulsionador de cortes na saúde, educação e programas sociais, com o apoio do PP. Em 2011, dezenas de milhares de pessoas cercaram o Parlamento em uma tentativa de impedir a aprovação de um orçamento austero. Alguns deputados tiveram que ser levados de helicóptero. O partido também se viu envolvido em toda uma série de escândalos de corrupção que seguem em aberto.
  4. Diante de tal situação, o presidente catalão Mas decidiu se colocar à frente do movimento pela independência para salvar sua carreira e a seu partido. O movimento independentista catalão logo adquiriu um caráter de massas (com milhões de pessoas se manifestando nas Diadas[4] (dia nacional da Catalunha), mas com uma direção composta por nacionalistas burgueses de direita.
  5. No outro lado do conflito, o PP, governando desde Madrid e também carcomido pela corrupção e executando uma política de repressão e de cortes, considerou que cutucar o nacionalismo espanhol reacionário lhe permitiria ganhar votos.
  6. Amplas camadas da sociedade catalã desejavam uma vitória de Podemos no governo central para poder mudar completamente a situação. Nas duas eleições gerais, as coalizões encabeçadas pelo Podemos foram a força mais votada na Catalunha. Entretanto, a incapacidade de Podemos em conquistar o poder no parlamento espanhol, os desejos independentistas, que viam a secessão como uma solução aos problemas da austeridade, dos cortes e da falta de democracia, ampliou-se de maneira inevitável. A porcentagem daqueles que apoiam a independência aumentou de por volta de 10% a 15% para quase 50%.
  7. O caráter deste movimento é, portanto, contraditório, com uma direção oportunista encabeçada pelo partido burguês Partido Democrata Europeu Catalão (PDeCAT)[5] (a reencarnação da CiU depois de um racha e uma mudança de direção), mas, por outro lado, as bases se inspiram, sobretudo, em uma rejeição ao regime espanhol reacionário e contra a supressão dos direitos do povo catalão, representados por Rajoy, o exército, a monarquia, entre outros.
  8. O regime espanhol que existe atualmente remonta à Constituição de 1978. Naquele momento, para frear o crescente movimento revolucionário de jovens e trabalhadores contra a ditadura franquista e evitar sua chegada ao poder, o velho regime conseguiu um acordo com os dirigentes dos partidos operários, basicamente com Santiago Carrillo do PCE[6] e Felipe González do PSOE[7]. Esse pacto, hoje conhecido como a “transição”, representou uma traição às aspirações genuínas dos trabalhadores à democracia e à revolução social. Assegurou a impunidade aos crimes do franquismo, cujo aparato de Estado foi mantido, impôs a monarquia dos Bourbon e a bandeira espanhola (ambos símbolos do regime de Franco) e a negação ao direito à autodeterminação para as nacionalidades oprimidas. O artigo 2º da Constituição de 1978 consagra a “indissolúvel unidade da nação espanhola”, deixando claro em outro artigo que essa será garantida pelas “forças armadas”.
  9. Aos olhos da classe dominante reacionária da Espanha, que nunca foi capaz de conseguir a verdadeira unificação do país sobre bases progressistas, mas que recorreu à brutal e descarada repressão, o direito à autodeterminação é visto, corretamente, como uma ameaça ao sistema de 1978 em sua totalidade. Isso explica a reação do Estado espanhol ao referendo catalão.
  10. A jogada do partido nacionalista de direita PDeCAT sempre foi arriscada, mas durante um tempo lhe permitiu se manter no poder, enganando, com a promessa de um referendo acerca da autodeterminação, aos nacionalistas de esquerda da Esquerda Republicana da Catalunha (ERC)[8] e, inclusive, aos anticapitalistas da Candidatura da Unidade Popular (CUP)[9].
  11. Em 2014 o Estado espanhol proibiu um referendo acerca da autodeterminação que então virou uma consulta não vinculante. Como resposta à proibição desse referendo, o governo catalão convocou eleições antecipadas em 2015, que foram apresentadas como um plebiscito acerca da independência. Os partidos independentistas conseguiram a maioria dos assentos, mas havendo obtido 48,8% dos votos, careciam de uma maioria social absoluta.
  12. Finalmente em 6 de dezembro de 2016, com votos do bloco independentista e a abstenção da Catalunha Sim é Possível (CSQP)[10] (a coalizão catalã do Podemos e a filial catalã da Esquerda Unida – IU[11]) e a ausência dos demais partidos, que boicotaram a sessão, o Parlamento aprovou uma lei para convocar um referendo acerca da independência para 1º de outubro. O Parlamento tomou essa decisão ciente de que representava um desafio aberto à lei espanhola.
  13. Em poucas horas o Tribunal Constitucional suspendeu a lei, esperando fazer uma análise acerca de sua constitucionalidade. Esse foi o início da onda de repressão por parte do Estado espanhol que procura evitar a realização do referendo.
  14. Os deputados do Parlamento que apresentaram a lei foram indiciados, atos públicos fora da Catalunha em apoio ao referendo foram proibidos por juízes, mais de 700 prefeitos catalães foram chamados para depoimentos (e ameaçados de prisão se não atendessem) pelo fato de declararem seu desejo de ajudar a organizar o referendo, os membros da comissão eleitoral receberam multas de 12 mil euros por dia, quatorze altos cargos da Generalitat[12] foram detidos pela Guarda Civil em suas casas ou a caminho ao trabalho e foram indiciados, as finanças da Generalitat foram interditadas pelo Estado espanhol, foram realizados confiscos em gráficas, os meios de comunicação foram censurados na retransmissão de publicidade acerca do referendo, fecharam-se páginas web que o promoviam e bloqueados suas réplicas hospedadas no exterior, ativistas que distribuíam folhetos sobre o referendo foram presos e seus materiais apreendidos, assim como cédulas de votação, entre outras ações repressoras. Esse é o ataque mais contundente contra os direitos democráticos fundamentais em 40 anos (quem sabe sendo equiparável à ofensiva contra os direitos democráticos do povo basco e suas organizações).
  15. A resposta selvagem do Estado espanhol contra os desejos do povo catalão de realização do referendo sobre seu futuro (um direito que conta com o apoio de cerca de 70% da população) revela a natureza profundamente reacionária do regime de 1978 e seus limites no que concerne aos direitos democráticos.
  16. A repressão colocou em séria dificuldade a organização do referendo, mas, ao mesmo tempo, provocou uma resposta massiva na rua. Em 20 de setembro, dezenas de milhares de pessoas cercaram a Conselleria d’Economia[13] quando estava sofrendo uma diligência da Guarda Civil. Os agentes foram incapazes de sair, ficando presos no prédio durante mais de 20 horas e somente puderam escapar de madrugada, quando a multidão se dispersou um pouco e com a ajuda de unidades de choque dos Mossos d’Esquadra[14].
  17. Nesse mesmo dia, milhares de pessoas se dispuseram na frente da sede da CUP, partido anticapitalista e independentista, evitando uma tentativa de invasão policial. Em Reus, depois da perseguição a ativistas que colavam cartazes, mais de mil pessoas participaram da colagem massiva de cartazes, o que a polícia fora absolutamente incapaz de impedir. Manifestações massivas semiespontâneas aconteceram em toda a Catalunha.
  18. A repressão estatal gerou uma dinâmica que deu a iniciativa às ruas. Comitês de defesa do referendo começaram a ser criados em numerosos bairros e povoados. Os estivadores de Barcelona e Tarragona decidiram boicotar aos navios cruzeiros que hospedam forças policiais trazidas à Catalunha para impedir o referendo. As universidades estão em greve por tempo indeterminado e os estudantes ocuparam o edifício histórico da Universidade de Barcelona. Os principais sindicatos, Confederação Sindical de Comissões de Trabalhadores (CCOO)[15] e União Geral dos Trabalhadores (UGT)[16], emitiram comunicados contra a repressão e uma série de centrais sindicais menores (CGT[17], COS, IAC[18]) convocaram a greve geral na Catalunha para 3 de outubro (que era a data mais próxima que se podia convocar em conformidade com a legislação sindical).
  19. A classe dominante espanhola desencadeou um movimento de massas nas ruas que não somente ameaça a estabilidade do governo Rajoy, mas que abre profundas rachaduras no sistema de 1978. Não pode, porém, recuar. Tem que restaurar o que ela chama de a lei e a ordem. Qualquer concessão antes de 1º de outubro seria uma condenação fatal para o PP. Agora estão acusando aos organizadores das concentrações de massas de 20 de setembro de “separatistas” e tomando o controle da polícia catalã, os Mossos d’Esquadra. Tendo a Generalitat sido impedida de acessar suas próprias contas e suas forças de ordem pública, a autonomia catalã foi praticamente suprimida.
  20. Os nacionalistas burgueses catalães despertaram um movimento de massas que lhes aterroriza. Mas agora não podem voltar atrás ou sentarem para negociar, já que seriam vistos como traidores pelo movimento e isso, provavelmente, conduziria seu governo à ruína.
  21. É obrigação de todos os marxistas revolucionários e, de fato, de todos os verdadeiros democratas, apoiar firmemente o referendo catalão de 1º de outubro, que representa o exercício do direito democrático básico à autodeterminação.
  22. Contudo, advertimos que, no contexto da Espanha, a colocação em prática do direito à autodeterminação acarreta consequências revolucionárias e só pode ser feita com métodos revolucionários. Não podemos confiar nos burgueses nacionalistas catalães. Somente a mobilização do povo nas ruas pode garantir a realização do referendo de 1º de outubro. A classe trabalhadora tem que ter um papel chave nisto.
  23. O caminho a seguir agora é expandir e fortalecer os comitês de defesa do referendo em cada bairro, escola, universidade e lugar de trabalho para abordar os aspectos logísticos da organização do referendo e sua defesa diante do Estado espanhol e suas forças repressivas. Esses comitês de defesa deveriam se unir a nível local, municipal e nacional por meio de delegados eleitos. Enquanto o Estado espanhol se prepara implacavelmente para esmagar o governo catalão, uma Assembleia Nacional de delegados dos comitês deveria ser convocada como representante legítimo do povo catalão.
  24. Os companheiros da CUP conseguiram muitas coisas (a greve geral, o estabelecimento dos comitês de defesa, a necessidade da mobilização de massas) e devem ser felicitados por isso. No passado, tomaram decisões que consideramos equivocadas, apoiando a candidatura de Puigdemont[19] e votando a favor de seu orçamento austero. Incentivamo-los a romper decisivamente com a política de colaboração de classes. A batalha pela república catalã não pode ser ganha a não ser que haja uma ruptura com o nacionalismo burguês, que não está disposto a levar a luta até as últimas consequências. Como dizem os companheiros da CUP, temos que varrer a todos (aos banqueiros, aos capitalistas, aos políticos corruptos, independentemente de usarem a máscara do nacionalismo catalão ou espanhol).
  25. A luta pela autodeterminação não pode ter êxito sem antes ganharmos a maioria da classe trabalhadora. Na Catalunha, muitos trabalhadores falam espanhol como língua materna e se identificam em maior ou menor medida como espanhóis. Mostram-se instintivamente céticos diante de um movimento dirigido pelos nacionalistas burgueses do PDeCAT, que impuseram políticas de austeridade e de cortes e representam os interesses da classe capitalista. A batalha pela república catalã deve ser vinculada à luta contra a austeridade capitalista, pelo emprego, pela saúde, pela educação e pelos direitos trabalhistas.
  26. Essa seria a melhor maneira de ganhar o apoio dos trabalhadores do restante da península, que contribuiriam para minar o aparato repressivo do Estado espanhol. Já ocorreram manifestações importantes em apoio ao direito à autodeterminação da Catalunha e em defesa dos direitos básicos em Madrid[20], Andaluzia, Euskal Herria (País Basco – N.T.) e em outros lugares.
  27. O Podemos e a IU têm uma grande responsabilidade. Realizaram um grande trabalho no momento de defender o direito à autodeterminação. Quando, porém, se viram diante do referendo de 1º de outubro, ficaram para trás. Usando desculpas legalistas, negaram-se a apoiá-lo, advogando, ao invés disso, por um “referendo pactuado”, uma proposta utópica, considerando que a classe dominante espanhola já deixou claro que não está disposta a fazer qualquer concessão. No lugar disso, deveriam dar apoio total ao referendo de 1º de outubro (sejam quais sejam suas limitações), já que representa o desafio mais sério ao regime de 1978 em toda sua história. Devem explicar que a luta do povo catalão também é a luta dos trabalhadores do resto da Espanha, contra a monarquia, o governo direitista do PP e contra um aparato de Estado reacionário herdado do franquismo e que qualquer golpe que debilite ao Estado espanhol dever ser bem-vindo, apoiado e usado para fortalecer a posição da classe trabalhadora.
  28. Podem, a seção catalã do Podemos, tomou uma decisão valente, com o respaldo da maioria de sua militância, ao apoiar 1-O[21] e chamar à máxima participação. Isso lhe fez ganhar muitas simpatias e apoios por parte da ala esquerda do independentismo. Há uma crescente unidade entre o setor de esquerda e anticapitalista do independentismo e a expressão política do 15M[22]. Essa é a base da luta por uma república catalã que represente uma ruptura clara com a austeridade, que só se pode conseguir rompendo com o capitalismo e avançando para a transformação socialista da sociedade.
  29. A Corrente Marxista Internacional declara seu firme apoio ao direito à autodeterminação do povo catalão e ao referendo de 1º de outubro. Um voto pelo SIM é um voto contra o regime de 1978. Nossa palavra de ordem é a república socialista catalã, que sirva de faísca para um movimento de mudança revolucionária em toda a Península Ibérica.
  • Pelo direito à autodeterminação do povo catalão!
  • Defendamos o 1º de outubro com métodos revolucionários!
  • Mobilização de massa nas ruas, comitês de defesa em todos os lugares, greve geral!
  • Abaixo a repressão do Estado espanhol, abaixo ao regime de 1978!
  • Pela república socialista catalã!
  • Pela revolução ibérica!

[1] Parlamento da Comunidade Autônoma da Catalunha (Nota do Tradutor – N.T.).

[2] PP, de direita e atualmente no governo da Espanha (N.T.).

[3] Convergència i Unió – Convergência e União (N.T.).

[4] Feriado catalão, comemorado no dia 11 de setembro (N.T.).

[5] Partit Demòcrata Europeu Català – Partido Democrata Europeu Catalão (N.T.).

[6] Partido Comunista da Espanha (N.T.).

[7] Partido Socialista Obrero Español – Partido Socialista Operário Espanhol (N.T.).

[8] Esquerra Republicana de Catalunya – Esquerda Republicana da Catalunha, fundado em 1931 (N.T.).

[9] Candidatura d’Unitat Popular – Candidatura da Unidade Popular, fundado em 1986 (N.T.).

[10] Catalunya Sí que es Pot – Catalunha Sim é Possível (N.T.).

[11] Izquierda Unida – Esquerda Unida, partido que, juntamente com o Podemos, faz parte da coligação Unidos Podemos na última eleição espanhola (N.T.).

[12] Estrutura institucional executiva da Comunidade Autônoma da Catalunha (N.T.).

[13] Órgão da Generalitat equivalente a Secretaria de Estado da Fazendo dos Estados brasileiros (N.T.).

[14] Força de segurança pública da Catalunha (N.T.).

[15] Confederación Sindical de Comisiones Obreras – Confederação Sindical de Comissões de Trabalhadores, central sindical com fundação vinculada ao Partido Comunista da Espanha (PCE) durante a década de 1950 (N.T.).

[16] Unión General de Trabajadores – União Geral dos Trabalhadores, central sindical fundada em 1888 juntamente com o PSOE (N.T.).

[17] Confederación General del Trabajo – Confederação Geral do Trabalho, sindicato libertário anarcossindicalista, fundado em 1977 (N.T.).

[18] Intersindical Alternativa Catalunya – Intersindical Alternativa da Catalunha (N.T.).

[19] Atual presidente da Generalitat e membro do PDeCAT (N.T.).

[20] Vide artigo Espanha: Centenas em Madrid a favor do direito de autodeterminação da Catalunha (http://www.marxismo.org.br/content/espanha-centenas-em-madrid-a-favor-do-direito-de-autodeterminacao-da-catalunha/>).

[21] Referência à data do referendo, 1º de outubro de 2017 (N.T.).

[22] Referência à manifestação realizada em 15 de maio de 2011 na Espanha, dando origem ao chamado movimento dos indignados (N.T.).