China: morte trágica de um jovem trabalhador de esquerda provoca uma torrente de pesar e raiva

No dia 21 de janeiro de 2021, um jovem trabalhador que operava um pequeno canal na popular plataforma chinesa de compartilhamento de vídeos Bilibili morreu na miséria em meio a discórdia familiar, doença e conflitos com seu empregador. Ele morreu de fome em seu apartamento alugado, e seu corpo só foi descoberto dias depois pelo proprietário.


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Conforme a notícia se espalhou, as discussões sobre sua morte explodiram em plataformas populares como Bilibili, Zhihu (um fórum de discussão popular) e Weibo (um aplicativo de mensagens onipresente). Em um dia, os seguidores de seu canal Bilibili aumentaram de 200 para 500.000 e, dois dias depois, para 1,31 milhão. Seu nome se tornou o segundo tópico mais pesquisado em Zhihu, com usuários expressando sua tristeza e pesar pelo falecimento desse jovem. Um deles comparou sua vida e morte trágicas às do atormentado artista holandês Vincent Van Gogh, que também viveu na pobreza e na obscuridade antes de encontrar a fama postumamente: “a raiva de Van Gogh não valeu de nada até que ele estivesse a quase dois metros sob a terra”.

O que aconteceu?

Resumindo: o capitalismo espremeu esse jovem até a morte, com a classe dominante simplesmente assistindo, como sempre. Este sistema explorador azedou a família, o trabalho e a vida privada de Muocha, e o forçou a uma luta desesperada pela sobrevivência, como tantos outros. A chamada “campanha vigorosa de redução da pobreza” e a previdência social básica que o governo chinês há muito vem promovendo pareciam estar completamente ausentes para esse infeliz indivíduo.

Muocha, cujo nome verdadeiro era Chen Songyang (陈 淞 阳), nasceu em 5 de abril de 1998 em uma das regiões mais pobres da China: Liangshan, Sichuan. Seus pais se divorciaram quando ele tinha três anos. Embora a custódia tenha sido concedida a sua mãe, ele viveu com seus avós durante a maior parte de sua infância. Sua família originalmente não era pobre nem rica, até que sua avó adoeceu. De acordo com seus amigos na internet, seus pais tinham dívidas enormes para pagar as despesas médicas de sua avó. Desde então, Muocha e seus pais começaram a se separar e ele acabou morando sozinho. Alguns especularam que isso aconteceu porque seus pais se esconderam para evitar os devedores.

Ele teve que abandonar a escola de comércio. Depois de pedir ajuda à mãe para se manter, o que se tornou inútil, passou a se sustentar aos 18 anos de idade, em 2016. Durante esse período, morou muito tempo em um cyber café e continuou procurando emprego. Na época, seu nome de usuário no QQ Messenger era Qingyu (清宇), e ele pegou dinheiro emprestado dos amigos que fez na internet, dinheiro este que nunca reembolsou, provavelmente devido a dificuldades financeiras. Depois de ficar deprimido por um ano inteiro, ele foi para Chengdu para trabalhar em 2017.

O trabalho em Chengdu apenas o levou a uma pobreza ainda maior. Inexperiente e sem diploma de ensino médio, Muocha enfrentou uma severa exploração. Ele conseguiu um emprego de estivador com um salário mensal de 800 iuanes (cerca de US$ 120 ou R$ 670), que era apenas a metade do salário-mínimo legal em Chengdu naquele ano. No entanto, o aluguel de um apartamento acessível era de 500 iuanes (cerca de R$ 420) por mês, deixando-o com 300 iuanes (cerca de R$ 250) para gastar em todo o resto. Chengdu é uma cidade grande, onde o custo de vida é mais alto em comparação com o campo. Trezentos iuanes não eram suficientes para três refeições ao dia. Conseguir comida suficiente era um desafio diário para Muocha. Assolado pela fome e pelo trabalho duro, ele contraiu doenças gástricas.

Durante abril e maio de 2018, Muocha lutou com seu patrão por causa de salários não pagos há muito tempo. Ele foi demitido e seu chefe rasgou seu cartão de identidade. Muocha foi ainda mais enganado por criminosos após ter perdido o emprego. Um estranho enganou-o em 300 iuanes usando o Huabei (花 呗), um aplicativo do Alibaba, com funcionalidade semelhante a um cartão de crédito. Ele mal entendia o que era o Huabei. A consciência de classe de Muocha cresceu rapidamente em resposta às suas dificuldades. Ele começou a publicar conteúdo online expressando ideias de esquerda. Seus muitos vídeos, artigos e comentários ainda podem ser vistos hoje.

Enquanto Muocha ficava cada vez mais para trás em termos de sua renda e o seu corpo se tornava incapaz de trabalho físico, ele decidiu voltar para casa para buscar ajuda. No entanto, ele não tinha dinheiro para viajar e teve que pedir ajuda a seus amigos na Internet. Por fim, ele conseguiu juntar algum dinheiro para voltar para casa. Ele considerou o dinheiro um empréstimo na esperança de preservar os últimos pedaços de sua dignidade e prometeu que o reembolsaria assim que começasse a ganhar algum dinheiro. Claro, a dívida nunca foi paga. Muitos de seus amigos já sabiam que ele não tinha como pagá-los e simplesmente trataram isso como apoio financeiro. Mesmo assim, houve outros que romperam a amizade com Muocha por causa de sua incapacidade de pagá-los.

Muocha vinha sofrendo de problemas estomacais há muito tempo e decidiu procurar tratamento em um hospital local por conselho de um grupo de amigos. No entanto, algumas das dívidas que ele contraiu o tornaram inapto para a cobertura da Segurança Nacional de Saúde da China. Ele então teve que usar suas únicas economias e alguma ajuda de amigos. No hospital local, sua doença gástrica foi diagnosticada como úlcera gástrica e gastrite. Como ele não podia arcar com os custos de uma hospitalização de longo prazo, ele se apressou a voltar para casa após alguns dias recebendo um soro intravenoso. Felizmente, os moradores locais não pediram que ele pagasse suas dívidas.

Seus amigos sugeriram que ele se inscrevesse para a assistência aos de baixa renda administrada pelo Estado. A esta sugestão, Muocha explicou o que ele próprio havia descoberto: sendo um jovem saudável, legalmente considerado como tendo uma renda, ele não seria considerado apto. Ele não receberia nenhuma ajuda por cair na pobreza devido a uma doença. Além disso, a assistência aos de baixa renda exige um certificado emitido pelo comitê da aldeia e pela delegacia de polícia (onde ocorrem os registros das famílias), o que exige uma carteira de identidade, que seu antigo patrão destruiu.

Em 2019, Muocha soube que a casa em que ele havia morado ia ser demolida (de acordo com as leis da China, ele deveria ter herdado a propriedade deixada por seus avós), e o governo o indenizaria com 300 mil iuanes (cerca de US$ 46 mil). Ele achou que os dias difíceis estavam chegando ao fim, mas seus familiares voltaram para expulsá-lo de casa, o único abrigo que possuía. Sua família (incluindo seu pai) encontrou algumas pessoas para espancá-lo no dia de seu retorno.

Nessas circunstâncias, Muocha teve que alugar um apartamento no centro do município. Ele trabalhava 10 horas durante o dia e transmitia ao vivo em seu canal Bilibili de duas a quatro horas à noite (nessa época, ele criava principalmente conteúdo relacionado a videogames). A única comida que ele tinha era macarrão instantâneo. Antes de ser banido em 2020, seus seguidores chegaram a 10 mil, e sua situação parecia estar mudando. Durante esse tempo, ele começou a pagar suas dívidas. Mais tarde, ele foi banido por publicar um vídeo comemorativo da Revolução de Outubro na Rússia e outros vídeos de esquerda, e teve que começar de novo. Muocha então se mudou para Xichang, Sichuan, para trabalhar, em janeiro de 2020.

Com a eclosão da pandemia, Muocha não conseguiu encontrar trabalho. Seguindo o conselho de seus amigos, ele decidiu se tornar um Virtual Livestreamer (V-tuber) para viver. Depois de receber alguns componentes do computador e um modelo de personagem virtual doado por amigos, Muocha iniciou sua carreira em V-tuber no Bilibili. Por uma questão de sobrevivência, ele parou de incluir conteúdo de esquerda em seus vídeos, mas, em vez disso, fez vídeos derivados com base na arte do videogame popular. As curtidas e seguidores que ele recebeu foram muito menos do que antes. A única comida que ele podia comprar era macarrão instantâneo, arroz e frutas; às vezes, até pegava vegetais descartados no mercado. Logo sua saúde piorou e não pôde mais realizar trabalhos pesados. É bastante irônico ver um indivíduo tão trabalhador e tenaz ficar cada vez mais pobre quanto mais trabalhava.

Ele foi diagnosticado com um tumor nasal em junho. Em agosto, o tumor começou a pressionar seus nervos ópticos e causou um desconforto extremo. Sua amiga Misaka Ilyich solicitou apoio para ele nas redes sociais. De outubro a novembro, Muocha começou a desmaiar com frequência e estava constantemente com sede, precisando de uma grande ingestão de água devido a um caso grave de diabetes. No entanto, ele ainda estava procurando muito por empregos até que finalmente não conseguiu continuar e teve que receber apoio financeiro de seus amigos. Ele então foi submetido a uma operação em seu tumor nasal no hospital Panzhihua de Sichuan, o que esgotou todas as suas economias. Até mesmo seu remédio era comprado em comprimidos individuais, enquanto ele ainda devia ao hospital 2 mil iuanes. Alguns meios de comunicação estaduais alegaram que seu pai pagou pelas taxas da cirurgia, mas se for verdade, como o saldo de sua conta ainda estava negativo? Além disso, parece improvável que o mesmo pai, que contratou bandidos para espancar Muocha e despejá-lo, o ajudasse a sair de uma encrenca.

O último inverno da vida de Muocha foi particularmente frio. Ele não tinha roupas quentes ou comida suficiente e estava relutante em comprar até mesmo alguns remédios com preço de 1,8 iuanes (cerca de R$ 0,28) para tratar suas graves enfermidades.

Em dezembro, o espírito de Muocha começou finalmente a se quebrar. Ele estava cercado por festas, reuniões familiares e refeições, que pareciam fora de alcance. Durante o Solstício de Inverno, ele escreveu sobre como não conhecia nem podia pagar pelo costume do norte da China de comer bolinhos. Uma semana antes de falecer, ele escreveu sobre querer desesperadamente comer morangos, mas não podia comprá-los. Pior ainda, desde 17 de dezembro, ele vomitava tudo o que comia e bebia e tornou-se incapaz de ingerir alimentos. No final, ele morreu da doença da pobreza aos 22 anos: cerca de metade da expectativa de vida média dos trabalhadores britânicos no século 19. A causa oficial da morte foi a cetoacidose diabética causada pela fome. Em outras palavras, ele morreu de fome.

Ressonância e repressão após a morte de Muocha

Muocha faleceu em janeiro de 2021. Na época, seus seguidores não passavam de algumas centenas. No entanto, em 25 de fevereiro, sua conta já havia conquistado 1,5 milhão de seguidores. E um tópico de Zhihu discutindo sua situação antes de sua morte também teve até 20 milhões de visualizações.

O enorme eco que a morte de Muocha produziu entre os usuários de internet chineses foi provavelmente visto pelo Estado como uma afronta às suas tão elogiadas “políticas de eliminação da pobreza”. Claro, o próprio incidente de Muocha expôs a mentira de que, sob o regime do Partido Comunista Chinês, as pessoas estão melhorando a cada dia. Antes da morte de Muocha, ele sofreu proibições, exclusão e silenciamento do regime. Poucos dias depois de sua morte ser confirmada, e com o aumento do clamor público, alguns meios de comunicação privados pró-governo tentaram distorcer e caluniar a situação de Muocha antes de sua morte.

Alguns meios de comunicação estatais também se lançaram para encobrir essa tragédia, alegando que a política de eliminação da pobreza ainda estava em andamento e que a família do falecido vivia feliz e com boa saúde. Eles afirmavam que tudo na China era reconfortante e positivo no geral; foi só porque o falecido tinha uma personalidade retraída e rebelde (e até cometeu “crimes”, talvez exigindo o seu salário) e fugiu de casa que esta tragédia aconteceu. Algumas outras fontes simplesmente redirecionaram a atenção das implicações sociais mais amplas da morte de Muocha para seus problemas familiares pessoais.

Algumas reportagens foram tão grosseiras em seu encobrimento (incluindo a do Sichuan Observer News, 川 观 网), que relataram erroneamente os locais onde os eventos ocorreram. Outros, como Edge News (界面 新闻), não tinham a menor noção da objetividade de suas reportagens sobre esta história, e até apresentaram informações que contradiziam completamente as relatadas por outros meios de comunicação locais e estaduais.

Essas calúnias sobre Muocha são infundadas. Segundo seus amigos e os vídeos que criou, Muocha estava longe de ser uma pessoa retraída ou rebelde, era apenas incapaz de se dar bem com sua família. Quando era um jovem de 20 anos sem ensino médio, ele enfrentou muitas dificuldades. Mesmo assim, ele ainda sobreviveu sem o apoio de sua família.

Uma citação do escritor francês Romain Rolland diz: “Só existe um verdadeiro heroísmo no mundo: ver o mundo como ele é e amá-lo”. A atitude de Muocha em relação à vida reflete precisamente esse tipo de heroísmo em face da adversidade. Além disso, ele não foi apenas uma vítima do capitalismo, mas também um jovem de esquerda com espírito revolucionário. Ele tinha sete contas no Bilibili no total, e seis delas foram banidas. O canal de uma delas era denominado: “Worker of the Red Star Republic Federation”. Até hoje, podemos ver a emergência de sua consciência de classe, seu desprezo absoluto pela sociedade capitalista e sua hostilidade genuína para com os partidários do capitalismo em sua conta principal, Tea 黑茶 (Chá Preto).

O significado do incidente de Muocha

O que Muocha significa para os revolucionários marxistas? Obviamente, a classe trabalhadora e as massas populares simpatizaram com o sofrimento que ele suportou. Nestes tempos, é comum que os trabalhadores acabem como ele na China. Em dezembro, testemunhamos uma enorme demanda por salários na planta do fabricante de dispositivos eletrônicos Changshuo em Xangai. Em janeiro, um membro da equipe da Pinduoduo (a maior empresa de tecnologia voltada para a agricultura) morreu repentinamente após trabalhar continuamente durante 60 horas. Também em janeiro, um entregador de Suzhou (uma cidade próxima a Xangai) decidiu se imolar para exigir o pagamento devido.

Isso é apenas a ponta do iceberg no que diz respeito aos crimes do capitalismo chinês. Essa é a base para que os jovens na China avaliem e questionem espontaneamente o sistema: por que essas coisas estão acontecendo? Como um Estado que se apresenta no primeiro artigo da Constituição como “socialista … [e] sob a ditadura democrática popular liderada pela classe trabalhadora e baseado na aliança de trabalhadores e camponeses”, se tornou tão reacionário? Os sindicatos e as leis trabalhistas são apenas decorativos? Por que os lucros fluem para os bolsos dos burocratas e capitalistas enquanto os trabalhadores literalmente morrem de fome? Se os trabalhadores supostamente lideram a sociedade e devem ser protegidos pelo Estado, por que carecem de qualquer forma de apoio social?

O mais interessante é que o tópico da jornada de trabalho de oito horas também alcançou o segundo lugar no ranking de pesquisa de Zhihu após a morte desse jovem. Podemos ver facilmente como eventos como o incidente de Muocha e outros estão tocando os nervos da classe trabalhadora. A classe operária não pode mais suportar a jaula que a burguesia lhes impõe e o chicote que os obriga a trabalhar. À medida que a opressão que vem da burguesia se torna mais forte, o desenvolvimento da consciência de classe será a perspectiva para a China no longo prazo. Esta é a realidade da qual a burguesia não pode escapar.

Além disso, vemos a intenção da chamada política de redução da pobreza da China: reinvestir parte do excesso de valor da China em infraestrutura em algumas áreas empobrecidas, a fim de prevenir uma crise de superprodução. Mas essa política reformista não pode proteger a China da inevitável crise econômica que é inerente ao sistema capitalista, nem evitar a tendência de concentrar cada vez mais riqueza em menos mãos. Nem pode se livrar da fonte da pobreza: o próprio capitalismo. Essas políticas não irão resolver fundamentalmente a grande desigualdade e as condições empobrecidas enfrentadas pela maioria, muito menos mudar a posição social do proletariado, ou permitir que ele realmente governe a sociedade em nome de seus interesses.

Se tivéssemos uma visão mais ampla da China, poderíamos dizer que todos os milagres econômicos, tecnológicos e de infraestrutura que ela já alcançou são o resultado direto dos esforços de trabalhadores de todas as profissões, ao invés da administração de uma burocracia que se beneficia do capitalismo. Esses gatos gordos não têm o direito de reivindicar crédito pelos milagres econômicos de seu país, enquanto detêm os Green Cards dos EUA e acumulam enormes somas de riqueza no exterior. Nesse sentido, eles nem mesmo são os nacionalistas genuínos que afirmam ser.

Em qualquer caso, os trabalhadores não têm país, muito menos qualquer interesse comum com esses burocratas, e não podem ter ilusões no sonho de “rejuvenescimento nacional” que a classe dominante cria. Se quisermos derrubar esta sociedade governada pela burguesia e burocratas totalitários, as teorias do marxismo são uma arma necessária para a juventude revolucionária e os trabalhadores. Devemos nos unir em solidariedade e lutar por mudanças revolucionárias em nossa sociedade! Só o programa do socialismo revolucionário e da democracia operária pode nos trazer um mundo que justifique as ideias que Muocha defendeu em sua vida.


Nota:

Este artigo se baseou principalmente em fontes primárias de usuários da Internet, como Misaka Ilyich ( 伊里奇), o próprio Muocha e outros. Algumas referências são retiradas da imprensa convencional. O internauta k2e4z7x9 também forneceu ajuda indispensável na pesquisa deste tópico.

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