"Bad Pharma" - Uma análise sobre a indústria farmacêutica

Companhias farmacêuticas manipulam ou retém dados científicos e mentem sobre os seus medicamentos, de forma a pôr em perigo, ferir ou matar pessoas doentes, para lucrar. Essa é a realidade chocante exposta no novo livro de Ben Goldacre[1], o “Bad Pharma: como as empresas de drogas enganam médicos e prejudicam pacientes"[2]. Este é um excelente exemplo da forma como o lucro recompensado pelo capitalismo está na frente do progresso humano.

A alegação do livro sobre a indústria farmacêutica deriva do fato de que as drogas são testadas por companhias que as fabricam e vendem por lucro. Como resultado, a realidade científica da eficácia das novas drogas e o dano que podem causar é escondido pelas companhias, com o interesse de fazer grandes somas de dinheiro (cerca de US$ 600 bilhões por ano).

O objetivo de testes clínicos com as drogas deve ser a verificação objetiva da eficácia e segurança dos novos medicamentos. Contudo, o resultado destes testes que refletem negativamente sobre os produtos que podem ser rentáveis à grande indústria farmacêutica são rotineiramente ocultados. Companhias farmacêuticas, rotineiramente, somente submetem para publicações de caráter científico os dados dos testes que mostram seus produtos de forma positiva.

Como os dados publicados na literatura científica são apenas acessíveis a um pequeno número de médicos, a informação negativa sobre novos medicamentos é escondida dos que utilizam os serviços de saúde e daqueles que necessitam informar suas decisões sobre se deve ou não se ministrar drogas novas aos pacientes.

Goldacre descreveu num discurso em uma recente conferência[3] como "um câncer no núcleo da medicina que se baseia em evidências". Isto é conhecido na profissão médica como referência de publicações, uma revisão sistemática do fenômeno em 2011 revelou que os resultados da metade de todos os testes clínicos que são realizados por empresas farmacêuticas nunca são relatados e que os resultados positivos sobre novas drogas são duas vezes mais propensos a serem publicados que os negativos. Outro fato que Goldacre cita em seu livro é um estudo sistemático de 2010, que constatou que 85% dos testes financiados pelas companhias farmacêuticas mostraram que suas drogas tiveram efeitos positivos, comparados com somente 50% dos testes financiados pelo governo.

Isto, diz Goldacre, “é pesquisa fraudulenta”, deturpando a verdade sobre a droga, não fabricando dados do estudo, mas os publicando seletivamente, de modo a apresentá-la de forma positiva. É do interesse de companhias farmacêuticas fazer isso, do contrário seus produtos podem não vender, o que significa uma perda enorme de investimento em pesquisa e desenvolvimento (custa, muitas vezes, cerca de US$ 4 bilhões de dólares para trazer uma droga para o mercado) e, consequentemente, perda de dinheiro.

Como resultado, os dados de testes clínicos à disposição dos médicos são muitas vezes incompletos ou enganosos, pois são gerados e controlados por empresas de medicamentos que só publicam resultados favoráveis. Consequentemente médicos devem decidir quais os medicamentos a receitar a seus pacientes com base em dados potencialmente sem sentido, decisões estas que, se forem mal tomadas, podem gerar efeitos colaterais graves ou até mesmo a morte do paciente.

Como Goldacre disse na introdução do seu livro: “Na medicina, médicos e pacientes usam dados abstratos para tomar decisões em um mundo real de carne e osso. Se essas decisões são equivocadas, podem resultar em morte, sofrimento e dor". A indignação de Goldacre é evidente aqui, decorrente do fato de que ele, como médico, prescreveu o antidepressivo ‘reboxetina’ baseado em dados enganosos e incompletos de testes que leu (porque eram os únicos dados publicados), que escondiam o fato de que o remédio produzia efeitos colaterais piores que outros antidepressivos. Atualmente, a prática de esconder dados indesejáveis ​​é perfeitamente legal e a ‘reboxetina’ permanece no mercado dando lucro ao seu fabricante, apesar de ser uma droga de qualidade inferior.

Num passado recente, as empresas farmacêuticas têm escondido de médicos e pacientes informações sobre graves efeitos colaterais, incluindo os que podem causar a morte do paciente. Por exemplo, o remédio para diabetes ‘Rosiglitazona’ fabricada pela ‘Glaxo Smith Kline’(GSK) mostrou aumentar o risco de ataques cardíacos. ‘Rosiglitazona’ entrou no mercado em 1999. Em 2003, foi descoberto pela OMS[4] que aumentava problemas cardíacos, resultado confirmado pela GSK e pela FDA[5] em 2006, mas não publicado por eles até 2008. Em 2007, uma meta-análise foi publicada, cujo resultado mostrou que a ‘Rosiglitazona’ aumentava o risco de problemas cardíacos em 43%, o que significa que, por vários anos, os médicos teriam-no prescrito sem conhecer os riscos a que estavam expondo seus pacientes.

Houve muitos casos em que os dados de testes que indicavam efeitos colaterais foram ocultados e os pacientes sofreram. A GSK tentou ocultar o fato de que o antidepressivo ‘Paroxetina’ aumenta o risco de suicídio. Também o fato de que o analgésico ‘Vioxx’ (proibido em 2004) aumentava o risco de ataques cardíacos não foi amplamente divulgado por seu fabricante, enquanto ele estava no mercado e sendo prescrito aos pacientes.

Em 2009, o ‘Tamiflu’ foi armazenado no Reino Unido, e pelos governos em todo o mundo, durante a histeria de gripe suína, a um custo de 500 milhões de libras para o contribuinte do Reino Unido. No entanto, não é claro que o ‘Tamiflu’ pudesse ter sido eficaz contra a gripe suína, tendo a doença se espalhado pelo Reino Unido, pois a ‘Roche’, que fabrica o ‘Tamiflu’, omitiu dados de testes clínicos sobre a droga. Se o ‘Tamiflu’ era claramente eficaz, por que eles mantiveram ocultos os dados que provavam isso?

A possível realidade é que o Tamiflu não fosse um tratamento eficaz contra a infecção influenza e que, se a gripe suína tivesse se tornado uma epidemia na Grã-Bretanha, o povo teria sofrido pela falta de um tratamento eficaz. Mesmo os governos, nessa ocasião, correram o risco de serem enganados pela ocultação de provas pelas companhias farmacêuticas, tudo isso pelo grande custo para o seu povo em impostos e o possível sofrimento.

Medicamentos não são desenvolvidos pelas companhias farmacêuticas se elas não puderem gerar lucro. Portanto, como as companhias farmacêuticas monopolizaram o desenvolvimento, produção e distribuição de medicamentos, pessoas em torno do mundo sofrem desnecessariamente. Pesquisa para tratamentos de doenças que afetam aqueles dos países mais pobres, onde os consumidores e os governos têm menos recursos, não receberam o mesmo financiamento de pesquisa para desenvolvimento de medicamentos de doenças predominantes nos países chamados de “primeiro mundo”, como obesidade e doenças neurológicas, onde o mercado de medicamentos é mais lucrativo.

Historicamente, pesquisas sobre tratamentos para epidemias que se manifestam no chamado “terceiro mundo”, como a doença do sono (africana) e a Malária, não têm sido tão rigorosamente levadas adiante, pois menos lucro é gerado a partir delas, mesmo sendo muito maior a escala de benefícios potenciais, em termos de acabar com o sofrimento humano e de encontrar tratamentos, pois geralmente são doenças muito mais tratáveis que ameaças à saúde como cânceres de estágios mais avançadas e doenças neurológicas. Lucro, ao invés de minimizar o sofrimento humano, é a principal motivação das pessoas que dirigem a pesquisa e as estratégias de negócios das empresas de medicamentos, o que resulta na miséria desnecessária em escala global.

Em seu livro Goldacre adota uma postura reformista, escrevendo que "As regras atuais - para empresas, médicos e pesquisadores - criam incentivos perversos, e nós vamos ter melhor sorte consertando esses sistemas quebrados do que tentando livrar o mundo da avareza". No entanto, ao permitir que as forças de mercado controlem como os nossos medicamentos são descobertos, testados e distribuídos, nós inevitavelmente convidaremos o desejo de lucro a bloquear o progresso da humanidade. Este livro destaca mais uma vez os efeitos perniciosos do capitalismo para a humanidade.

O capitalismo recompensa a ganância pessoal e a busca de lucro. No campo do desenvolvimento de medicamentos, o objetivo de lucro das companhias executivas farmacêuticas tem corrompido o que deveria ser uma luta abnegada para aliviar o sofrimento humano, a descoberta e desenho de medicamentos que fizessem as pessoas doentes melhorar. Reforma adequada dos regulamentos sobre testes de medicamentos, obrigando todos os dados sobre novas drogas a serem livremente disponíveis para todos, mesmo que isso reflita de maneira negativa sobre os produtos de companhias farmacêuticas, é fundamental, mas, embora isso possa parar os dados enganosos que causam danos, não nos livraria do lucro corruptível que impulsiona o desenvolvimento de medicamentos atualmente e que limita a sua eficácia para acabar com a miséria humana.

A melhor solução para a corrupção da indústria farmacêutica é acabar com o lucro que dirige a elaboração e distribuição dos medicamentos. Dada a importância do desenvolvimento e produção de medicamentos para a sociedade, quão benéficos são e como podem ser prejudiciais se não forem os corretos, a única maneira de fazer a indústria de droga servir verdadeiramente à humanidade como um todo, é tirá-la das forças do Capital. Devemos nacionalizar a indústria farmacêutica. Tirar proveito da equação e deixar a sociedade pagar pelo desenvolvimento, controlando democraticamente a fabricação e distribuição de drogas, no interesse de aliviar o sofrimento humano através da cura das doenças. Isso é tudo que a medicina deveria ser.

Fonte: Socialist Appeal (Grã-Bretanha)


[1] Ben Michael Goldacre é um escritor, físico e psiquiatra britânico. É autor da coluna "Bad Science" do jornal The Guardian.

[2] Do original: Bad Pharma: How Drug Companies Mislead Doctors and Harm Patients.

[3] TED - Technology, Entertainment and Design

[4] Organização Mundial da Saúde

[5] Food and Drug Administration: Órgão governamental dos EUA responsável pelo controle dos alimentos, suplementos alimentares, medicamentos, cosméticos, equipamentos médicos, materiais biológicos e produtos derivados do sangue humano.