Tumulto nas relações internacionais

O isolacionista Trump mudou de rumo. Em vez de sua promessa de se manter fora do Oriente Médio, ele se utilizou da indignação por um ataque de armas químicas sobre a população civil de Khan Shaykhun, na Síria, para lançar 59 mísseis de cruzeiro contra uma base aérea do governo sírio. A Casa Branca foi rápida em anunciar que a ação enviava um forte sinal não somente a Assad, como também ao restante do mundo.

A Grã-Bretanha, França, Alemanha e outros estados quisling [estados colaboracionistas – NDT] imediatamente deram as boas-vindas ao golpe “decisivo”, mas “proporcional”, dos EUA contra o regime sírio por seu uso covarde de armas químicas. No entanto, somente as agências de segurança dos EUA afirmam ter provas de que Assad foi o responsável, as mesmas agências que juraram que Saddam Hussein tinha armas de destruição em massa.

Em resposta, os russos reagiram iradamente ao ataque de mísseis dos EUA, aliando-se ao Irã, o outro principal apoiador externo de Assad, para dar um alerta contra futuros ataques estadunidenses.

Enquanto Washington e outros governos dóceis do Ocidente culpavam o governo sírio, a Rússia insistia que as mortes de civis se deveram ao vazamento de gás asfixiante de um depósito de armas químicas da oposição quando este foi atingido por um ataque aéreo das forças sírias.

Para determinar a versão mais provável, temos que fazer a pergunta: quem se beneficia com este incidente?

Para começar, a cidade afetada não tinha nenhuma importância militar. Assad estava ganhando a guerra na Síria, então por que iria deliberadamente usar armas químicas, o que necessariamente provocaria retaliações por parte dos EUA? Assad teria tudo a perder ao fazer isto. As forças jihadistas de oposição têm acesso às armas químicas e as utilizaram. A oposição ficou claramente em júbilo com o bombardeio dos EUA contra Assad. Um ex-embaixador britânico na Síria advertiu que isto significará que mais ataques químicos serão realizados pela oposição, para culpar Assad e atrair os EUA a atacar alvos governamentais.

Apesar das afirmações dos EUA de que o bombardeio foi um evento “isolado”, a ação militar enviou ondas de choque por todo o mundo. Tanto Vladimir Putin quanto o presidente iraniano, Hassan Rouhani, emitiram uma declaração conjunta: “As ações agressivas dos EUA contra um estado soberano, que violam o direito internacional, são inaceitáveis”.

O regime em Pyongyang, que provocou Washington com um teste de mísseis este mês, também condenou o ataque. King Jong Un, o líder norte-coreano, descreveu o ataque dos EUA como um “imperdoável ato de agressão” que justificava a necessidade de desenvolver seu próprio arsenal nuclear. Esse ato simplesmente fortalecerá o regime de Pyongyang e sua determinação de desenvolver sua capacidade nuclear. Eles viram o que aconteceu a Saddam e a mudança de regime no Iraque e tiraram a conclusão de que necessitavam armar-se e defender-se com suas próprias armas de destruição em massa.

Para aumentar a pressão, o Pentágono decidiu deslocar um grupo de porta-aviões às proximidades da Península Coreana, o que foi descrito por um oficial militar dos EUA como uma “demonstração de força”. Isso faz parte do que disse Rex Tillerson, o Secretário de Estado dos EUA, a respeito de que a era de “paciência estratégica” dos estadunidenses com a Coreia do Norte tinha terminado. Ele fez questão de enfatizar que os EUA estavam considerando todas as opções, inclusive ataques militares.

Mas tudo isto é um blefe. A Coreia do Norte é um estado estalinista muito instável, governado por um ditador e armado com armas nucleares. Ao contrário do que fez na Síria, os EUA não podem usar mísseis contra a Coreia do Norte por medo de uma retaliação mortal. Se atacada, a Coreia do Norte poderia facilmente enviar mísseis com bombas nucleares a Tóquio e à Coreia do Sul, destruindo também as bases militares estadunidenses na área. Os programas nucleares e de mísseis norte-coreanos estão amplamente dispersos, incluindo subterrâneos e submarinos. Seria extremamente improvável que todo o programa fosse destruído em uma só onda de ataques, o que imediatamente levantaria a perspectiva de uma retaliação nuclear por parte do Norte.

Os EUA teriam que levar em conta esta realidade. A Coreia do Norte com certeza não se compara à Síria, que estava mais ou menos indefesa à agressão estadunidense. A Síria desmoronou e não é capaz de reagir. Com a Coreia do Norte é totalmente diferente. Inclusive um pretenso ataque cirúrgico por parte do governo estadunidense traria consequências desastrosas, e não somente para seus aliados.

A NBC informou que uma recente revisão pelos EUA da política norte-coreana incluiu opções de instalação de armas nucleares estadunidenses na Coreia do Sul e de assassinato de Kim Jong Un, o líder norte-coreano. Isso se assemelha às tentativas dos EUA de desestabilizar Cuba e assassinar Castro, o que terminou em completo fracasso. Seria um percurso muito perigoso, e é certamente para provocar Pyongyang.

A ação unilateral dos EUA na Síria certamente suscitará temores não apenas na China, não simplesmente porque Donald Trump estava jantando com Xi Jinping enquanto as bombas estavam caindo, mas por causa das conversas cada vez mais duras sobre a Coreia do Norte que partem do governo dos EUA. A ameaça – e é isto o que é – de que Trump irá sozinho contra a Coreia do Norte será levada mais a sério pelos chineses. Dito isto, a China não tem nenhum interesse em mudar sua política e o apoio à Coreia do Norte. Um colapso do regime de Pyongyang, ou a paralização de sua economia, enviaria uma vaga de refugiados à China, com todas as perturbações que isso significaria. Também abriria o caminho para uma eventual reunificação da Coreia, o que significará mais tropas e bases estadunidenses na própria fronteira da China. Isto seria intolerável para o regime chinês. É por esta razão que os chineses decidiram desafiar o blefe de Trump ao mover 150 mil soldados à fronteira com a Coreia do Norte.

Joe Detrani, um ex-funcionário da CIA que teve relações com funcionários da Coreia do Norte, disse que Kim poderia estar preocupado com sua segurança, mas que não mudaria sua política. “Seu pai, Kim Jong Il, literalmente se escondeu depois da primeira guerra do Golfo, quando os EUA utilizaram poder aéreo esmagador para destruir o exército do Iraque”, disse Detrani. “Kim Jong Un pode fazer o mesmo… Mas isto não o impedirá de melhorar seus programas nucleares e de mísseis”.

O governo chinês, no entanto, advertiu a Coreia do Norte, através de Global Times, um jornal do Partido “Comunista” Chinês, a entender a gravidade da situação e evitar outra provocação ao conduzir o que seria o seu sexto teste nuclear.

“Se a Coreia do Norte realizar o sexto teste nuclear, a possibilidade de que ele se torne um fator decisivo para empurrar Washington a realizar uma aventura militar não pode ser excluída”, declarou o jornal em um editorial. “É de vital importância que a Coreia do Norte não julgue mal a situação no futuro. Novos testes nucleares irão encontrar reações sem precedentes da comunidade internacional, inclusive um ponto de inflexão”.

Não somente os chineses estão nervosos, mas ainda mais o estão os governantes em Seul e em Tóquio. Trump foi forçado a telefonar ao primeiro-ministro japonês Shinzo Abe e a Hwang Kyo-ahn, o presidente sul-coreano em exercício, sobre o ataque à Síria e a situação da península norte-coreana. E não surpreende que eles estejam nervosos. Mesmo que os EUA fossem capazes de nocautear todo o programa nuclear da Coreia do Norte de um só golpe, os norte-coreanos ainda têm uma formidável artilharia convencional. Eles poderiam lançar um ataque devastador a Seul, a capital sul-coreana, uma cidade de 10 milhões de habitantes que se encontra a 35 milhas da fronteira norte-coreana. O Japão também estaria vulnerável a ataques de mísseis, assim como as bases estadunidenses na região.

Essa aparente mudança da política externa de Trump certamente produziu ondas de choque em termos internacionais. A antipatia anterior de Trump com relação a uma intervenção no Oriente Médio, um dos pontos fundamentais de sua campanha para se tornar presidente, parece ter sido descartada. Trump, tão instável como sempre, parece estar retrocedendo. Então, quais são as razões para esta aparente mudança sobre a Síria? A mudança – mesmo que seja temporária – é em sua maior parte um reflexo dos problemas que Trump enfrenta no front interno, uma vez que ele enfrenta uma pressão crescente sobre as relações de seus associados com Moscou. Isso, por sua vez, é um reflexo da influência do “estado profundo” dos EUA, dos ramos dos serviços secretos que são inerentemente hostis à Rússia. Ao reafirmar o poder dos EUA no palco global, Trump espera desviar a atenção de seus opositores políticos – mas ao preço de submeter-se à sua agenda de política externa. Isso também explicaria o anúncio, feito apenas alguns dias antes do ataque à Síria, de que Steve Bannon, o estrategista-chefe do presidente e principal defensor do nacionalismo de “América Primeiro” na Casa Branca, tinha perdido seu assento no Conselho Nacional de Segurança. O general Michael Flynn, que compartilhava muitos dos instintos radicais de Bannon, também foi demitido como chefe do CNS em fevereiro.

Contudo, esses recuos já criaram problemas em sua base de apoio, que é hostil a mais aventuras externas. Seus apoiadores estão dizendo que ele deve ser levado em conta, “tiro no pé”, para reverter esta aventura indesejável. Ann Coulter, autora de In Trump We Trust, tuitou seu desânimo, perguntando: “Por que se envolver em outra catástrofe muçulmana?”. Esta poderia ser a razão do recuo de Trump, ao esclarecer que os EUA “não estavam entrando na Síria”, o que só aumenta a confusão.

Na realidade, toda a conversa sobre linhas vermelhas de Washington são palavras vazias nas presentes condições. O bombardeio da Síria agravou a situação aumentando as tensões em todo o mundo. Apesar de toda a linguagem dura, Washington será forçado a viver com as armas nucleares norte-coreanas, como o fez no passado com outros países. No final, também terá que chegar a um acordo com a Rússia no Oriente Médio. Não tem alternativa real. A Rússia tem todas as cartas na Síria, com influência e presença militar, algo que os EUA não têm.

No curto prazo, a tentativa de Washington de aumentar a pressão sobre a Rússia para retirar seu apoio ao presidente sírio Assad será recebida com frieza. A visita de Tillerson a Moscou não avançou nada neste sentido. Pelo contrário, os EUA foram friamente rechaçados. A ação unilateral dos EUA na Síria prejudicou as relações com a Rússia, um ator-chave na Síria, ou mesmo as deteriorou seriamente. Sem a Rússia, os estadunidenses não têm nenhuma influência na região. A tagarelice dos EUA de que o problema na Síria era o patrocínio de Moscou a um “regime assassino” simplesmente lançará lenha na fogueira. Tillerson não alegrará os russos com suas alegações de que Moscou não foi necessariamente cúmplice no ataque químico, mas “incompetente”. Por enquanto, os russos deram as costas aos estadunidenses e aumentaram o seu apoio a Assad.

Na verdade, os estadunidenses deram um tiro no próprio pé. A situação também expõe os limites do poder estadunidense. Eles são impotentes, assim como o Ocidente.

A silenciosa reunião dos países do G-7 reconheceu sua debilidade. Inclusive Tillerson foi forçado a temperar sua linguagem. E o bufão Boris Johnson, o Ministro dos Negócios Externos britânico, foi censurado por seus apelos por mais sanções contra a Rússia e a Síria. “A questão não foi mencionada por mais ninguém, exceto Boris Johnson”, declarou o Ministro do Exterior francês. De forma humilhante, ele foi tratado como um colegial malcriado, posto para se sentar no fundo da sala em silêncio. Em um gesto de impotência, Boris o Paspalhão cancelou uma visita planejada a Moscou, dizendo que desistiria de Tillerson para entregar uma “mensagem clara e coordenada”. O boicote simplesmente refletiu o pequeno peso que a Grã-Bretanha tem nos assuntos internacionais. Johnson, refletindo a posição do Reino Unido, é simplesmente um cãozinho de estimação dos EUA e teme pôr o pé no lugar errado para não levar um pontapé do Tio Sam. Seu isolamento no show do G-7 mostra como a Grã-Bretanha está fora de contato na diplomacia mundial.

Os britânicos são como os cães ladradores, um cão solitário que não morde. Inclusive o Ministro da Defesa britânico, Michael Fallon, tentou levantar sua autoestima acusando a Rússia de estar diretamente envolvida no derramamento de sangue na Síria. “Este último crime de guerra aconteceu sob sua responsabilidade”, trovejou Fallon. “Nos últimos anos, eles tiveram todas as oportunidades de puxar as alavancas e deter a guerra civil. Através de seus representantes, a Rússia é responsável por cada civil morto na semana passada”.

Mas este peito que late é totalmente oco. Vão pagar o preço por esta bravata.

Com o vagabundo Trump na Casa Branca, oscilações na política externa são inevitáveis. Com uma estratégia desprovida de ideias, ele é como um touro bravo dentro de uma loja de porcelana chinesa. Alienou os europeus, ameaçando dissolver a OTAN. Declarou “America First”, ameaçando um novo período de protecionismo. Pela primeira vez na história, ele enfrentou abertamente a CIA e os serviços de segurança. Virou o Partido Republicano de cabeça para baixo. Em uma situação já bastante instável das relações internacionais, ele apenas está lançando lenha na fogueira.

Artigo publicado originalmente em 13 de abril de 2017, no site Corrente Marxista Internacional, sob o título “World Relations in Turmoil”.

Tradução de Fabiano Leite.