Revelações dos Alphabet Boys: como o FBI se infiltrou e minou o Black Lives Matter

Os protestos do Black Lives Matter (BLM) no verão de 2020 abalaram a estrutura do capitalismo dos Estados Unidos. No auge, o movimento envolveu mais de 20 milhões de pessoas em 2.500 cidades e vilas, tornando-se a maior mobilização da história do país. Foram muitos os fatores que contribuíram para que o movimento terminasse em um impasse; entre eles, a falta de uma direção revolucionária. Mas, durante anos, alegou-se que os infiltrados do Estado ajudaram a minar o BLM. No entanto, havia pouca evidência irrefutável – até agora.

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No início de 2023, o premiado jornalista investigativo Trevor Aaronson, usando gravações secretas de áudio, relatórios e vídeos, expôs como o FBI se infiltrou e minou o movimento em uma série de 10 partes, constituindo a primeira temporada do podcast Alphabet Boys, que busca expor as atividades nefastas de órgãos de inteligência como o FBI, CIA, DEA, ATF etc.

Documentos incriminadores vazaram para Aaronson por alguém do FBI que estava profundamente perturbado com o uso de informantes para minar a luta contra o racismo. Esses documentos pintam uma imagem sombria, vergonhosa e totalmente bizarra das operações secretas do FBI em nome do capitalismo dos EUA.

“Extremismo de Identidade Negra”

Aaronson estudou por muito tempo as agências secretas dos Estados Unidos. A primeira temporada de Alphabet Boys se concentra na vigilância, infiltração e dissolução forçada dos movimentos de luta negra, especialmente após o 11 de setembro de 2001, quando o FBI se deu poderes de longo alcance nunca vistos desde as décadas de 1960 e 1970.

De acordo com o podcast, os relatórios do FBI se referiam aos manifestantes do BLM como “extremistas antigovernamentais”, que é uma das ideologias classificadas como “terrorismo doméstico” pelo FBI. Sob a presidência de Donald Trump, o Departamento de Justiça criou uma nova classificação abrangente de “extremismo de identidade negra” como uma forma crescente de extremismo antigovernamental.

A justificativa do FBI para isso consiste em grande parte em um punhado de crimes desconexos ao longo de um período de anos. Cita-se um relatório divulgado alguns anos antes dos protestos de 2020 pelo ex-agente do FBI Michael German, que diz que a agência “estava presumindo que qualquer ativista negro que protestasse contra a violência policial e o racismo policial fazia parte de um movimento violento para derrubar o governo ou para matar policiais”.

Essa retórica é amplamente ignorada por Aaronson como uma paranoia excessiva. Mas embora, por um lado, seja provável que o FBI estivesse usando a “ameaça” do “extremismo negro” para justificar suas atividades e poderes, vale a pena relembrar a ascensão da luta negra nos anos 1960, que se transformou em uma ameaça genuína aos interesses do capitalismo americano. É bastante lógico que eles tentem, portanto, cortar esse último movimento pela raiz.

A guerra contra o terror transformou o FBI, dando-lhe uma vasta gama de ferramentas de vigilância que pode usar e usou contra os protestos do Black Lives Matter. Quando 2020 chegou, o FBI havia recrutado um pequeno exército de informantes e uma rede de vigilância que podia monitorar as comunicações digitais sem mandados. Também inventou uma nova forma de investigação denominada “avaliação”, que significa simplesmente uma investigação sem qualquer suspeita razoável de que um crime foi cometido. Dessa forma, um agente do FBI pode espionar praticamente qualquer pessoa, por qualquer motivo.

Ferramentas do ofício

Tendo estabelecido o plano de fundo, Aaronson leva a investigação para Denver, Colorado. Aqui, em um dia normal de primavera em 2020, um homem branco de meia-idade, dirigindo um carro fúnebre prateado cheio de armas, entrou no movimento BLM como informante federal.

Qualquer ideia de que a espionagem é conduzida por agentes sofisticados e suaves que bebem martínis se evapora diante desse estranho personagem, o criminoso condenado Mickey Windecker: um bruto com uma obsessão infantil pelo anti-herói dos quadrinhos O Justiceiro, que já havia sido preso por agressão, abuso sexual, por não registrar-se como delinquente sexual, por ameaças, posse ilegal de arma e por se passar por um policial, entre outras acusações.

Windecker alegaria, ad nauseam, ser um “filho da puta durão” que lutou contra o Estado Islâmico na Síria, além de ser um diplomata curdo. Embora ele tenha ido para a Síria, os voluntários estrangeiros com quem ele serviu o retrataram como um elemento passivo e inútil. O FBI rotineiramente utiliza-se desses criminosos e figuras duvidosas como informantes, pois, em suas próprias palavras: “se você quer pegar o diabo, você precisa ir para o inferno”.

Windecker iria não apenas participar dos protestos do BLM em Denver, mas também liderá-los e envolver ativistas em crimes federais. A seção do podcast detalhando suas atividades, abrangendo a maioria dos episódios, revela as táticas dos informantes do FBI. Embora o Programa de Contrainteligência (Cointelpro) usado pelo FBI contra dissidentes nas décadas de 1960 e 1970 tenha sido oficialmente encerrado, as táticas desenvolvidas dentro dele para esmagar a esquerda estão muito em uso.

Hoje, o FBI tem mais de 15 mil informantes registrados, participando de pagamentos em dinheiro ou recebendo clemência em condenações criminais. O próprio Windecker recebeu pelo menos US$ 20 mil em poucas semanas por seu trabalho como agente provocador.

Quando ele entrou em cena, imediatamente começou a ganhar a confiança dos ativistas locais, especialmente na ala jovem dos Socialistas Democráticos da América. Aqui, adolescentes ingênuos ficaram cativados por suas armas, linguagem chula e atitude agressiva. Isso foi particularmente eficaz quando os ativistas perceberam que marchas pacíficas e apenas apelando por reformas não levavam a lugar nenhum, especialmente com a polícia espancando impiedosamente os manifestantes noite após noite. Algumas pessoas envolvidas no movimento estavam procurando uma saída para o impasse, e as táticas de agente provocador do fantoche do FBI pareciam ser um caminho a seguir.

Windecker mostrou sua capacidade de levar a luta a novos patamares. Um dos ativistas que acabara de começar a atividade política era um jovem negro decidido chamado Zeb Hall. Hall convidou Windecker para seu apartamento, onde este último disse que o BLM precisava expor o sistema econômico americano como fundamentalmente injusto para os negros e outras minorias. Foi quando Windecker perguntou a Hall se ele queria aprender sobre “explodir prédios, táticas de guerrilha e sabotagem”, além de pressionar Hall a tomar medidas terroristas para promover o movimento. Sem o conhecimento de Hall, Windecker estava gravando essa discussão, construindo um caso que poderia levar ao FBI para provar seu valor como informante pago.

Quando outro ativista negro, Trey Quinn, suspeitou de Windecker, ele o chamou por telefone e o atraiu, propondo que eles deveriam bombardear um prédio. Windecker concordou enfaticamente e se ofereceu para marcar uma reunião com alguns criminosos que conhecia. “Neste ponto, reconheço minha linguagem vaga e sua linguagem específica. E então ele está tentando me levar a dizer coisas específicas. E eu apenas mantenho isso vago”, disse Quinn.

Nesse ponto, Quinn suspeitou que Windecker era um delator. Sentindo que seu disfarce poderia ser desfeito em breve, Windecker convocou uma reunião com outros ativistas locais, onde partiu para a ofensiva, afirmando que Quinn planejava lançar uma bomba incendiária, “coisa que só um agente federal faria”, basicamente pintando Quinn como o verdadeiro agente provocador.

Em um instante, Quinn ficou “sujo”. Em Agentes de Repressão: As Guerras Secretas do FBI Contra o Partido dos Panteras Negras, de Jim Vander Wall, ficar “sujo” é referido como a prática de “criar suspeitas – por meio da disseminação de rumores, fabricação de evidências etc. – sobre membros qualificados da organização, geralmente em posições-chave, como informantes do FBI”. Essa tática serve para “isolar e eliminar” a liderança organizacional.

Essa sempre foi uma tática comum do FBI. Em um caso, o líder dos Panteras Negras, Fred Bennett, foi “sujado” pelo informante do FBI Thomas Mosher. Em 1969, Bennett foi executado por outro Pantera, Jimmy Carr, como resultado. O próprio Carr seria “sujado” por um informante do FBI e assassinado em seu próprio jardim naquele mesmo ano. Não há evidências de que Carr ou Bennett fossem informantes.

O método funcionou contra Quinn, que imediatamente se viu excluído dos comícios e da comunicação com outros ativistas, enquanto o prestígio de Windecker crescia. Em agosto, Windecker havia se tornado um líder dentro do movimento. Foi quando ele organizou um assalto total contra uma delegacia de polícia, onde manifestantes entraram em confronto violento com policiais, encontrando forte repressão. Informantes cometem crimes rotineiramente para ganhar confiança. De 2011 a 2014, o FBI permitiu que informantes violassem a lei mais de 20 mil vezes para aprofundar suas investigações.

Foi nessa época que Windecker avançou e tentou implicar Zeb Hall e outro ativista, Bryce Shelby, em uma conspiração para assassinar o procurador-geral. Dessa forma, o FBI poderia “reunir” vários ativistas em um único caso de conspiração. Essa tentativa, para simplificar, fracassou. Mas, gravações de voz suficientes foram feitas para levar os sites locais de notícias de direita ao frenesi por conta de uma “conspiração terrorista frustrada”, que nunca teria existido, em primeiro lugar, se o FBI e seu informante não o criassem eles próprios!

Nesse ponto, o FBI tinha poucas evidências concretas para apresentar um caso contra Hall e Shelby. Em casos como esse, o FBI tentará construir uma acusação de “apoio” para, pelo menos, ter algo a mostrar. Hall acabaria sendo convencido a comprar uma arma para Windecker em uma loja de artigos esportivos. Como Windecker era um criminoso, Hall havia tecnicamente cometido um crime federal! No final, após meses de investigações inúteis, o FBI deu dinheiro do governo a alguém sem ficha criminal, para comprar uma arma, para ser entregue a um agente do governo, a fim de incriminá-lo apenas para salvar as aparências.

Lições para a esquerda

A infiltração do FBI no movimento de justiça social de Denver teve um efeito desestabilizador, caótico e destrutivo. Era inevitável que um movimento de protesto poderoso e espontâneo como o BLM enfrentasse a infiltração. À medida que a luta de classes se intensifica e novas lutas nesta escala (e maiores) irrompem, podemos esperar o mesmo no futuro.

Como podemos lutar contra essas táticas? Primeiramente, precisamos entender o caráter do inimigo que enfrentamos. Os Alphabet Boys fornecem mais uma prova de que não há métodos demasiado sujos para os agentes do Estado capitalista, quando visam grupos ativistas, sindicalistas e a esquerda.

Muitos dos ativistas entrevistados no Alphabet Boys eram, segundo eles mesmos, ingênuos demais. Zeb Hall não acreditava que o FBI fosse capaz de usar um criminoso condenado como informante e se recusou a acreditar mesmo quando as evidências apontavam o contrário. No final, ele se envolveu em um crime federal. Da mesma forma, dois jovens membros da Juventude dos Socialistas Democráticos da América, em Denver, repetidamente defenderam Windecker e o ajudaram a lutar contra qualquer alegação de que ele era um delator.

No entanto, devemos deixar claro que o BLM não acabou em um beco sem saída por causa da infiltração do FBI. Pelo contrário, isso se deveu à ausência de qualquer partido ou organização, com um programa revolucionário, capaz de se conectar com a raiva nas ruas e conduzir as massas à vitória por meio dos métodos de luta de classes. O caráter espontâneo e febril do BLM era, por um lado, uma fonte de força, mas, por outro, tornava mais fácil para um canalha como Windecker ascender a uma posição de liderança dentro dele.

Este é um testemunho da importância de se construir uma organização marxista profissional, disciplinada e bem-educada, antes das poderosas erupções das massas, a fim de lhes fornecer liderança; com estruturas internas democráticas para eliminar elementos destruidores, combater o aventureirismo e evitar caças às bruxas em pânico que apenas beneficiam os agentes policiais.

Dito isso, não devemos exagerar o “poder invencível” do Estado. Alphabet Boys realmente expõe a incompetência do FBI em grandes detalhes (às vezes hilários). Apesar de sua crueldade, os agentes do Estado capitalista não podem resistir ao poder da classe trabalhadora uma vez que ela é despertada e mobilizada à ação sob a bandeira de um genuíno partido bolchevique. Como Alan Woods escreve sobre o brutal regime czarista em seu livro, Bolshevism: The Road to Revolution:

“Seria difícil imaginar um Estado mais poderoso (aparentemente) do que o czarismo russo, com seu poderoso exército, numerosa força policial, auxiliares cossacos e vasta burocracia. Um braço daquele Estado – como de qualquer outro – era a polícia secreta. Aqui a arte da provocação foi desenvolvida a alturas até então inimagináveis. Mas no momento da verdade, o que importava? A classe trabalhadora, sob a liderança do Partido Bolchevique, simplesmente varreu tudo com um toque de mão”

Este exemplo histórico deve nos encorajar em nossa luta pelo socialismo e nos ajudar a não nos deixarmos intimidar pelas trapaças das agências estatais. Ao mesmo tempo, devemos expor e condenar ruidosamente o comportamento criminoso das “autoridades” capitalistas, que pisoteiam suas próprias leis e arruínam a vida de jovens lutadores de classe para defender o sistema podre, racista e explorador dos patrões. Joguemos essas serpentes na lata de lixo da história, junto com o próprio capitalismo!