O que foi a rebelião de outubro no Chile e o que resultará dela?

O notável movimento de protesto de outubro do ano passado representa um salto qualitativo em relação a outros movimentos de massa e protestos que, por mais de uma década, marcaram a paisagem do Chile pós-ditadura. De uma perspectiva global, foi um ponto de virada no contexto da crise mundial do capitalismo. Foi uma revolta em massa verdadeiramente insurrecional que, da sexta-feira, 18 de outubro, ao final de novembro, envolveu entre cinco e seis milhões de participantes ativos.

Vários meses após o início da revolta, a palavra de ordem “Fuera Piñera” (Fora Piñera) continua sendo uma das mais populares no Chile. Expressa o clima geral em relação ao governo do empresário-presidente Sebastián Piñera. Mas a rejeição popular de todas as instituições – dada a exposição à corrupção de Carabineros (polícia nacional), do Exército, da Igreja e do Congresso – não é novidade.

As pessoas demonstraram seu descontentamento em várias lutas políticas: o movimento estudantil de 2006-2011, revoltas regionais e ambientais, greves de professores; “Maio feminista” e outras mobilizações de mulheres; marcha pela No More AFP (Administradoras de Fundos de Pensões, o sistema de pensões privatizado existente desde 1980); protestos contra a privatização de recursos naturais em meio à seca severa e contínua; resistência à repressão contínua do Estado no Wallmapu (território Mapuche ancestral); greves de subcontratados em mineração, silvicultura, fazendas de salmão e portos; e disputas trabalhistas no varejo, call centers e em outros lugares.

Outubro Vermelho

A fagulha acesa pelos estudantes do ensino médio em resposta à proposta de tarifa de metrô de outubro em Santiago despertou um espírito de solidariedade popular: nesse ponto, todas as lutas convergiram. Podem-se ouvir as demandas nas ruas e vê-las como pichações nas muralhas da cidade em todo o país. O grito: “Não são 30 pesos, são 30 anos!” é um protesto contra todo o espectro político que administrou a transição democrática limitada em 1989. Essa transição garantiu a impunidade e a continuidade do sistema capitalista, defendido pela constituição ditatorial de 1980. Entre as principais demandas do movimento de massas estão educação, pensões, igualdade, salários e pleno emprego.

Depois de uma semana, o estado de emergência do governo e as medidas de toque de recolher foram derrubados pelo espírito de luta das massas nas ruas. As massas venceram apesar da violência exercida pelo Estado. O movimento ainda possui força extraordinária e apoio avassalador, como evidenciado pela primeira vez na convocação nacional para “a maior marcha do Chile” em 25 de outubro.

A greve geral de 12 de novembro, convocada pelo Bloco Sindical da Mesa de Unidade Social, foi a paralização mais eficaz desde 1990. O papel da classe trabalhadora como protagonista na luta disparou os alarmes da classe dominante, precipitando em 72 horas, um acordo entre os partidos que representam o regime em crise.

O clamor das massas por uma Assembleia Constituinte representa a aspiração por mudanças sociais fundamentais e um repúdio a todo o regime existente. Até os partidos de direita, em risco de serem varridos pelo levante, foram forçados a forjar um acordo com a oposição, com o objetivo de neutralizar o movimento. É triste dizer que o Partido Socialista e a Frente Ampla (uma coalizão popular que se uniu como produto de anos de protesto estudantil) deram seu apoio: daí o chamado “acordo pela paz e pela nova constituição“. O regime estava nas cordas, assediado pelas massas nas ruas. Os líderes da esquerda parlamentar o salvaram com base no apelo a um processo constitucional que não ia mais além dos limites do parlamentarismo burguês.

Em 11 de maio de 1983, quando a ditadura de Pinochet ainda estava no poder, a Confederação dos Trabalhadores do Cobre (CTC) convocou a primeira greve em 10 anos. Iniciou-se um processo de radicalização política e mobilização maciça contra o regime brutal. Os dias seguintes de protestos foram insurrecionais. Vários anos depois, no entanto, a transição para a democracia parlamentar, depois que Pinochet deixou o cargo em 1989, foi o produto de um acordo de cima para evitar a insurreição de baixo. E esse foi o papel desempenhado pela Coalizão de Partidos pela Democracia. A lição a ser aprendida disso é que mais um gesto nas urnas do regime não garante uma transformação radical. Dentro dos limites do sistema capitalista, essa transformação não é possível.

Já se passaram 30 anos de “transição democrática”, fundada na impunidade dos crimes da ditadura e na continuação do sistema econômico capitalista. E mesmo o recente acordo 15N (para o plebiscito constitucional de 2020, assim denominado porque foi assinado em 15 de novembro de 2019) procura canalizar aspirações democráticas e melhor qualidade de vida dentro de uma estrutura institucional mandatada pelo Congresso. Este acordo não afetará os privilégios da classe capitalista, nem pretende mudar o sistema privatizado de pensões ou as empresas privada na área da saúde ou educação. O acordo não menciona a justiça por violações dos direitos humanos, nem exige a libertação dos mais de 2 mil presos políticos atualmente sob custódia.

A oligarquia empresarial chilena é uma classe dominante ignorante e atrasada. Incapazes de desenvolver a economia por seus próprios meios, e fracos diante da imensa classe trabalhadora e dos pobres, necessitam se submeter ao domínio imperialista. As demandas democráticas colidem com as demandas econômicas do capitalismo em crise, que impõe a exploração predatória dos recursos naturais e do trabalho humano. As garantias democráticas para a sustentação de tudo o que é precioso para o desenvolvimento da sociedade humana, como saúde, moradia, educação e aposentadorias, não passarão por leis assinadas no papel. Pelo contrário, são determinadas pelo equilíbrio de forças entre as classes em disputa. Uma nova constituição, nos termos propostos pelo regime atual, é uma farsa. Uma nova constituição, que realmente atenda aos interesses da maioria oprimida, só será possível quando a classe trabalhadora derrubar o podre regime burguês e tomar o poder político e econômico em suas próprias mãos. Somente expropriando as multinacionais, seus recursos podem ser democraticamente controlados e colocados a serviço da maioria.

Mesa da Unidade Social

O papel da Mesa da Unidade Social em oposição ao governo tornou-se cada vez mais vago ao longo do tempo. A organização nunca pensou seriamente em atender à demanda mais popular dos protestos: “Fora Piñera”. O Comitê Coordenador Feminista de 8 de março e a Assembléia Estudantil do Ensino Médio denunciaram o papel conciliador adotado por alguns líderes do Bloco Sindical da Mesa da Unidade Social em relação a um governo que literalmente declarou guerra aos trabalhadores e aos pobres. Nem a repressão nem as falsas concessões conseguiram reprimir a tremenda revolução que foi desencadeada no Chile. Mas não nos enganemos: a abordagem conciliadora e colaboracionista da liderança sindical com os patrões, bem como a linguagem parlamentar dos políticos de esquerda, deram uma trégua vital ao regime em crise.

A economia já estava em grave recessão quando a pandemia precipitou a atual crise mundial capitalista. O plebiscito por uma nova constituição foi adiado para outubro de 2020. Enquanto isso, ainda existem confrontos de rua e protestos reais de fome em várias partes do país, destacando de forma crua o que o despertar chileno denunciou: a vulnerabilidade de grandes setores da população, a desigualdade, a precariedade da saúde pública, aposentadorias e salários inadequados, informalidade e desemprego. Os decretos trabalhistas e as medidas sanitárias são uma quarentena feita à medida pela ala direita e pelos empregadores, supervisionada pelos militares nas ruas.

Sem “paz” ou “nova constituição” à vista, o acordo 15N fica despojado de sua razão de ser. Em vez disso, serve ao seu objetivo latente: apoiar a sustentação do regime pelo conjunto do sistema de partidos.

Recentemente, o governo criou um novo “Acordo Nacional”, desta vez sob o disfarce da crise da saúde. De qualquer forma, essa situação não é nova. Esta política de acordos e cozinhas parlamentares tem sido a norma nos últimos 30 anos.

O extraordinário sobre o despertar chileno é a energia dos jovens, mostrando além de qualquer dúvida que outra realidade é possível. O que há de novo é a combatividade das massas e as formas de auto-organização espontânea exibidas na greve geral, nos conselhos e assembleias, na Primera Linea (organizações de autodefesa durante os protestos) e nas brigadas de médicos. Essas formas embrionárias de poder dual provavelmente continuarão a confrontar o poder oficial do Estado burguês e de suas instituições, embora talvez com outro nome.

Além dos grupos esquerdistas históricos que haviam lutado contra a ditadura, novos setores das massas, jovens e não tão jovens, ocuparam o centro do palco nos bairros da classe trabalhadora de Santiago e nas províncias. De particular importância é o movimento de mulheres, que bateu todos os recordes na convocação de 8 de março. Durante anos, o movimento denunciou a violência masculina e o Estado capitalista, e exigiu direitos sociais.

O levante mostrou imensa força, mas havia um limite para o que ele poderia fazer. Manifestações em massa são essenciais para construir a autoconfiança das pessoas. Mas não são suficientes para derrotar o aparato estatal, a mídia de massa da burguesia e os danos causados pelos líderes conciliadores de esquerda.

A Mesa de Unidade Social, respondendo à pressão das bases, virtualmente conseguiu por um tempo dar uma direção unificada a partir de cima. Mas faltavam mecanismos reais de democracia direta interna. Foi uma reunião de representantes de organizações por cima, não uma assembléia genuína de delegados eleitos em fábricas, locais de trabalho, bairros e nas barricadas. Por isso, a Mesa não conseguiu honrar plenamente o espírito combativo e as demandas prementes da classe trabalhadora, como a saída de Piñera.

Na ausência de uma perspectiva clara de como proceder, as greves gerais, que são medidas parciais e de duração limitada, inevitavelmente levaram ao cansaço. Os limites foram então estabelecidos pelos líderes sindicais e pela esquerda reformista. Ou, dito de outra forma, o verdadeiro limite era a ausência de liderança revolucionária da classe trabalhadora.

Pelo poder dos trabalhadores

Como ficou demonstrado em 12 de novembro, a classe trabalhadora tem a capacidade de paralisar o país e de pôr em xeque o governo dos patrões. O agente da necessária transformação revolucionária é a classe trabalhadora.

Em resposta à crise econômica, o governo colocou planos de intervenção estatal na agenda. Em particular, a falência da LATAM Airlines suscitou propostas de representantes comerciais para o resgate de empresas “estratégicas”. Essas propostas revelam a profunda hipocrisia do capitalismo, que socializa perdas, mas privatiza os lucros. Ao mesmo tempo, o partido da Convergência Social (progressista) apelou à intervenção do Estado para evitar demissões. E o Partido Comunista do Chile sugeriu a criação de um fundo para o resgate de empresas essenciais, com uma carta endereçada ao “Sr. Presidente”. O caráter socialista dessas políticas é discutível. O ponto importante é expropriar os setores fundamentais da economia sem indenização e colocá-los sob controle dos trabalhadores, e não resgatar empresas privadas.

Embora medidas paliativas que aliviem o desemprego e a fome possam, em princípio, beneficiar a classe trabalhadora, elas serão pagas com impostos e dívida pública. Por fim, esse dinheiro acaba nas mãos dos bancos: os donos dos meios de produção. Esses métodos acabam salvando o capitalismo e impedindo uma explosão social. Nenhum decreto ou artifício parlamentar pode impedir a perda de empregos. Somente através da propriedade comum dos meios de produção podemos criar um plano econômico socialista. Somente através da expropriação dos donos do Chile, todas as nossas demandas podem ser atendidas.

A chave será mobilizar e organizar os milhões de pessoas que vieram lutar. As demandas tendem a convergir para um programa unificado:

  • Saúde e educação públicas, gratuitas e disponíveis para todos.
  • Jornada de trabalho de 40 horas.
  • Salário mínimo de 700 mil pesos mensais.
  • Substituição da AFP por um sistema de pensões sob administração pública.
  • Nacionalização do cobre, da água, do lítio e dos recursos marinhos.
  • Expulsão de empresas florestais estrangeiras.
  • Fim da militarização do Wallmapu.
  • Fim da impunidade de instituições estatais como os Carabineros.

Essas demandas são apoiadas pela grande maioria dos chilenos.

Em todo o mundo, a burguesia planeja salvar o capitalismo, fazendo os trabalhadores pagarem pela crise. Estamos testemunhando um estágio histórico de agudo confronto entre as classes. Durante o Outubro Vermelho da América Latina, vimos o surgimento de grupos de luta enraizados na classe trabalhadora e nos oprimidos; e órgãos embrionários de duplo poder, como no Equador e no Chile. Vimos protestos maciços no Haiti, Porto Rico, Honduras e Colômbia.

No Chile, os trabalhadores desafiaram as forças repressivas, superando o estado de emergência e o toque de recolher. Mas nenhum movimento permanente de massa regional ou nacional se consolidou. Uma corrente política marxista aprofundaria o alcance dos agrupamentos espontâneos que surgiram durante o Outubro Vermelho. Essa corrente lutaria dentro e fora dos sindicatos para generalizar as experiências mais avançadas da classe trabalhadora. Construir esse movimento é tarefa da Corrente Marxista Internacional, presente em mais de 40 países. Lutamos pelo desenvolvimento pleno da inteligência e da força criativa da classe trabalhadora.

Para os marxistas, é fundamental entender até que ponto e através de que meios a classe trabalhadora pode se colocar na vanguarda do movimento. A tarefa é desenvolver as organizações de poder dos trabalhadores para derrubar o governo dos patrões e substituí-lo por um governo dos trabalhadores. Os marxistas devem abrir um diálogo com as fileiras dos partidos de esquerda, incluindo o Partido Socialista, o Partido Comunista do Chile e a Frente Ampla. Podemos apresentar uma alternativa revolucionária para todos que estão decepcionados com essas organizações.

O sistema capitalista enfrenta a crise mais séria de sua história. Propriedade privada e fronteiras nacionais são barreiras para a solução dos problemas fundamentais da humanidade. A atual pandemia global confirma isso mais uma vez. Os donos do Chile não podem fazer outra coisa senão defender seus interesses capitalistas. Está na hora dos trabalhadores defenderem nossos interesses também. As alavancas fundamentais da economia devem ser colocadas sob o controle dos trabalhadores e do povo. Uma transformação socialista da economia e da sociedade, liderada democraticamente pela classe trabalhadora, direcionará a produção para a satisfação das necessidades das pessoas, e não para o lucro de uma minoria que ameaça a existência da humanidade e do planeta.

Uma vitória revolucionária no Chile, no atual contexto de revolta em nível internacional, abriria as comportas a uma onda que varreria os apodrecidos regimes capitalistas em todo o continente e mais além. Estamos lutando por um Chile socialista no âmbito de uma Federação Socialista da América Latina, o que seria um poderoso impulso para uma Federação Socialista Mundial.

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