O discurso do Presidente dos Estados Unidos nas Nações Unidas: A mensagem de Donald Trump ao Mundo

No dia 19 de setembro, o presidente Donald Trump pronunciou o seu primeiro discurso na Assembleia Geral das Nações Unidas para esboçar sua visão do mundo, do universo e da vida em geral.

O Sr. Trump, como passamos a saber através da versão veraz e imparcial posta em circulação pela Organização Trump, é “a própria definição da história do êxito americano, estabelecendo continuamente os padrões de excelência ao expandir seus interesses em imóveis, esportes e entretenimento. Ele é o arquétipo do empresário – um negociador inigualável”.

Com esse curriculum vitae olímpico, como a Assembleia Geral, constituída de meros mortais, não ficaria impressionada com sua mensagem ao mundo? Sem dúvida ficaram impressionados, embora não necessariamente na forma esperada pelo distinto orador.

Para tornar suas ideias simples o suficiente para que até mesmo sua audiência nas Nações Unidas pudesse entendê-lo, o SR. Trump decidiu, sabiamente, encená-las na forma de um conto de fadas. Nessa visão trumpística do mundo, tudo está perfeitamente dividido entre o Bem e o muito Bem (este último sendo os EUA sob a inspirada e generosa liderança de Donald J. Trump), e o Mal e o muito, muito Mal.

Como em todos os bons contos de fada, as forças do Bem sempre estão envolvidas em uma luta maniqueísta com as forças do Mal. Estas lançam uma sombra maligna sobre o mundo de paz, abundância e democracia na forma de uma nuvem de cogumelos radioativos, são encabeçadas pelo malvado (e clinicamente insano) ditador do Reino Ermitão da Coreia do Norte, algumas vezes referido com o seu pseudônimo de Kim Jong Un, mas cujo verdadeiro nome, podemos agora revelar, é Homem Foguete.

Chegando logo em seguida em segundo lugar na lista dos poderes do Mal – também conhecidos como “Estados Velhacos” – está o malvado Império Persa, algumas vezes erroneamente descrito como Irã. Este império malvado de fato representou uma grave ameaça à civilização cristã ocidental antes mesmo desta última existir. Sob os malvados reis Dario e Xerxes, fizeram tudo o que era possível para destruir a civilização grega e esmagá-la no pó. Eles não tiveram sucesso nessa empreitada, que só foi realizada com êxito muitos anos depois por Angela Merkel.

Por sinal, para aqueles de vocês que estiverem se questionando, a palavra Maniqueu deriva-se, em última instância, da antiga religião persa que separava tudo entre Sombra e Luz, entre o Bem e o Mal. Também significa ver as coisas em preto e branco. Assim, Donald Trump compartilha isso com os antigos persas – embora lamentavelmente não mais do que isso, visto que eles eram de fato um povo bastante civilizado.

Sobre os “estados vilões” e como lidar com eles

Foi talvez um pouco indelicado que o presidente chegasse a pronunciar palavras duras sobre as Nações Unidas depois de o Conselho Geral ter, de forma tão generosa, atendido aos seus interesses ao aprovar novas sanções contra a Coreia do Norte. O Sr. Trump poderia ter demonstrado pelo menos um pouco de gratidão, uma vez que todas as suas ameaças de lançar fogo e enxofre sobre as cabeças norte-coreanas nada produziram na prática. E ele, sem dúvida, exigirá rapidamente a assistência da ONU para tirá-lo do buraco que ele próprio cavou de forma tão magistral.

Mas Donald J. Trump não conhece o medo – nem a gratidão, também. O homem da Casa Branca não mede suas palavras. Ele anunciou a sua espantada, e possivelmente atemorizada, audiência que o Homem Foguete de Pyongyang (sim, isto soa como o título de um filme B de terror) estava envolvido em uma “missão suicida”. Ele acrescentou sombriamente que, se a América for forçada a se defender ou a seus aliados: “não teremos escolha senão destruir totalmente a Coreia do Norte”.

Temos aqui uma peça verdadeiramente clássica do discurso vintage de Trump. É a nova diplomacia de Washington, que visa estabelecer a paz mundial ameaçando com seu arsenal nuclear a cada cinco minutos. O Sr. Trump descreveu os líderes da Coreia do Norte como um “bando de criminosos” que põem o mundo em perigo em sua busca de armas nucleares e mísseis balísticos. O fato reconhecido de que os EUA possuem um arsenal nuclear que empequenece o armamento nuclear combinado do restante do mundo não é visto, naturalmente, como uma ameaça para ninguém, e sim, pelo contrário, como uma manifestação das tendências pacíficas do imperialismo americano.

Como o Sr. Trump, não somos grandes admiradores de Kim Jong Un ou de seu regime stalinista. Mas é necessário ressaltar que a Coreia do Norte é uma pequena e pobre nação asiática, enquanto os EUA são o estado militar mais poderoso que o mundo já viu. O espetáculo do gigante confrontando o pigmeu, como se estivessem em iguais termos, é tão extraordinário que chega ao surreal.

O conflito com a Coreia do Norte revelou claramente os limites do poder do imperialismo estadunidense. Trump transpira fogo e enxofre, mas todas as suas ameaças não produziram nenhum efeito em Pyongyang, além de aumentar os ruídos bélicos e o número já crescente de testes nucleares e de foguetes voando sobre o Japão.

É comum se dizer que Kim Jong Un está louco e que é impossível entender seus motivos. Na verdade, não é impossível, em absoluto. Recentemente o governo de Pyongyang declarou seu interesse, que é bastante fácil de entender: pretende alcançar um estágio de paridade nuclear com os EUA. Isso, naturalmente, não deve ser levado ao pé da letra. É impossível para a Coreia do Norte igualar o vasto arsenal nuclear dos EUA ou chegar perto disso. O que podem fazer, e parece que nada pode detê-los, é adquirir a posse de tecnologia suficientemente avançada que lhes permita ameaçar os EUA com ataques nucleares em seu próprio território.

O raciocínio por trás disso é realmente bastante simples. Lembremos que Saddam Hussein foi acusado pelos americanos de possuir armas de destruição em massa. Porém, Saddam Hussein não possuía armas de destruição em massa. Portanto, Saddam Hussein foi derrubado e assassinado pelos americanos. Conclusão: a Coreia do Norte, que se sente ameaçada pelos EUA -que a descreve como um estado velhaco liderado por bandidos insanos -, deve adquirir armas de destruição em massa o mais rápido possível.

A conclusão pode ser de gosto desagradável. Contudo, a lógica por trás dela é irrefutável. E nenhuma quantidade de blefes e fanfarronadas de Washington ou de contos de fadas encenados pelo presidente americano nas Nações Unidas farão a menor diferença.

Irã: com acordo ou sem acordo?

Depois de lançar o seu bafo sobre a Coreia do Norte, o presidente em seguida voltou sua atenção para esse outro reconhecido Estado Velhaco e poder do Mal – o Irã. Ele verteu o equivalente a um balde de água contaminada sobre o acordo que seu antecessor, Barack Obama, junto a outras potências mundiais, tinha chegado com o Irã, depois de 12 anos de longas e árduas negociações.

O objetivo declarado do referido acordo foi o de congelar o programa de armas nucleares do Irã em troca do alívio das sanções internacionais. Não se fez nenhuma menção ao regime interno do Irã ou à política externa. Essa omissão não foi acidental, já que teria tornado impossível o acordo alcançado sobre o tema central – o programa nuclear do Irã. Foram necessários 12 anos de duras negociações para garantir o acordo, mas finalmente foi alcançado. Houve júbilo nas ruas de Teerã, alarme na Arábia Saudita, fúria em Israel e ranger de dentes no Partido Republicano dos EUA.

Os ataques violentos contra o Irã nos círculos políticos da direita nos EUA se intensificaram recentemente. Não é mais que uma reação de pânico em resposta ao fato de que o Irã aumentou consideravelmente seu poder e influência no Oriente Médio. Na realidade, são os americanos que têm a culpa dessa rápida expansão iraniana. Não foram os erros de Obama e de seu acordo que explicam o êxito iraniano, mas a estupidez de seu antecessor Republicano, George W Bush.

Os ignorantes e incompetentes imperialistas americanos invadiram o Iraque e destroçaram o país inteiro, destruindo seu exército e assim desestabilizando todo o Oriente Médio. Todos os crimes e monstruosidades posteriores são, em última instância, devidos ao monstruoso crime do imperialismo. Ao destruir o exército iraquiano, os americanos removeram o único contrapeso efetivo ao Irã, que é agora uma das potências dominantes na região.

Em uma contundente condenação ao que ele chama de apoio iraniano aos “grupos terroristas” no exterior e à repressão política, Donald exigiu que o mundo enfrente o “criminoso” regime de Teerã. O acordo nuclear foi um “embaraço para os EUA”, e o mundo ainda não “ouviu a última palavra sobre isto”, anunciou ele dramaticamente, enquanto o representante iraniano, com um sorriso sereno, continuava a brincar com jogos de computador em seu smartphone.

Em contraste ao seu colega iraniano, Bibi Netanyahu mal se continha, saltando feito pipoca em seu assento, para expressar o entusiasmo por Donald Trump. O que tende a ser esquecido -porque nunca é mencionado nos ambientes corteses – é que o próprio Israel já possui armas nucleares. Israel esteve roubando segredos nucleares e fabricando bombas de forma encoberta desde a década de 1950. Os governos ocidentais, particularmente o dos EUA, fecham os olhos. Israel possui um arsenal nuclear subterrâneo inteiro – agora estimado em 80 ogivas, em paridade com a Índia e o Paquistão. Fez um teste de bomba há quase meio século, o que não causou nenhum protesto internacional ou mesmo muita publicidade. Isso não levou a qualquer voto de censura no Conselho Geral, a nenhuma sanção e a nenhum apelo para uma mudança de regime.

As pessoas do Oriente Médio podem se perguntar por que se permite a Israel possuir armas nucleares, quando o Irã segue o seu exemplo, isto é visto como uma ameaça à paz mundial. Pensando bem, como é que o embrionário programa nuclear da Coreia do Norte é apresentado como uma ameaça ao mundo, enquanto o gigantesco arsenal nuclear dos EUA não o é? A resposta a essas perguntas impertinentes é, naturalmente, perfeitamente clara para todo ser humano razoável. Tudo isso se explica no conto de fadas de Trump, ou, como se pode colocar numa linguagem clara: eles são os vilões e nós somos os mocinhos.

Infelizmente, no mundo real, que difere em alguns aspectos bastante importantes dos contos de fada, algumas vezes é terrivelmente difícil estabelecer a diferença entre os mocinhos e os vilões. A Síria é um excelente exemplo disso. Na Síria, os americanos e seus amigos sauditas e israelenses estiveram apoiando os mais perversos e reacionários grupos terroristas islâmicos durante anos. As revelações de Wikileaks de relatórios secretos da inteligência dos EUA comprovaram de forma conclusiva que os sauditas estiveram armando e financiando o Estado Islâmico (EI), enquanto os americanos e os israelenses apoiavam outros bandidos ligados a Al Qaeda.

Seu objetivo era derrubar o regime de Assad -e substituí-lo com algo infinitamente pior. Mas foram esmagados sem piedade. Uma grande parte de sua derrota se deveu à participação das forças iranianas e de suas milícias Xiitas aliadas, notadamente Hezbollah, no conflito sírio. Em consequência, os iranianos agora têm o controle de grandes partes do Iraque e da Síria, bem como do Líbano através de Hezbollah, que agora se transformou em uma força militar formidável.

Trump diz que o acordo com o Irã foi um acordo excepcionalmente ruim para os EUA, mas, na realidade, o Irã vem cumprindo as condições do acordo, enquanto os EUA não. Nem a inteligência dos EUA nem a britânica acreditam que Teerã decidiu construir uma bomba nuclear, e os projetos atômicos do Irã estão sob constante monitoramento internacional. Entretanto, ainda sob Obama, os EUA aprovaram certo número de leis impondo novas sanções contra o Irã, que rompem tanto os termos quanto o espírito do acordo.

Agora está parecendo que o “negociador inigualável” vai cancelar o acordo com o Irã completamente, embora as cabeças mais calmas de sua própria administração tentem persuadi-lo a não o fazer. Se o fizer, qual será o resultado? Teerã seguirá o exemplo da Coreia do Norte, acelerando o seu programa nuclear, e, como acontece com a Coreia do Norte, não há muito o que os americanos possam fazer para impedir isso.

Os israelenses podem ficar tentados a fazer algo a respeito. Porém, sua capacidade para uma ação militar é limitada e ficaria restrita aos bombardeios. Isso seria ineficaz, visto que os iranianos estão bem preparados e suas instalações nucleares serão protegidas em bunkers subterrâneos de concreto reforçado que podem suportar todos os impactos, exceto um golpe direto com altos explosivos. Na melhor das hipóteses, os bombardeios apenas serviriam para adiar o programa nuclear iraniano, mas não para impedi-lo. Essa intervenção colocaria a população do lado do governo, sem evitar que o Irã se tornasse uma potência nuclear.

Os gostos e desgostos de Trump

Tal como o fiandeiro Bottom no Sonho de uma Noite de Verão de Shakespeare, o Sr. Trump pode rugir “tão docemente como um rouxinol”. Então, para não assustar as damas, ele rugirá “tão suavemente como uma pomba”. Mas o que a imprensa informou no dia seguinte em manchetes de primeira página foi uma série de ameaças belicosas a todos os poderes do mal que se atreverem a ameaçar a América ou a perturbar o sono tranquilo de seus cidadãos. Seu estilo dramático de nacionalismo estava apenas ligeiramente envolvido em um tênue véu de jargão diplomático sobre “países responsáveis e orgulhosamente soberanos”, todos trabalhando harmoniosamente juntos para isolar os “regimes velhacos” (Coreia do Norte e Irã) numa venerável e sagrada causa de autodefesa e paz mundial. A mensagem central veio alta e clara: a América em primeiro lugar.

O Sr. Trump cantou um longo e comovente, mas excessivo, hino de louvor ao nacionalismo – ou ao patriotismo, como ele prefere chamar – e à economia de livre mercado -isto é, ao capitalismo. Exortou outros países a seguir seu brilhante exemplo, a levantar a ponte levadiça e a construir suas próprias e fortes economias nacionais. Ele declarou seu compromisso inabalável com as coisas que tornaram grande a América: a iniciativa pessoal, a livre empresa, a religião e a família, que, como todos sabemos, são os verdadeiros alicerces de qualquer sociedade saudável – por algum motivo, ele esqueceu de mencionar a maternidade e a torta de maçã.

Essa é a soma total da visão filosófica do mundo de Donald Trump. É o que ele representa. Mas a que ele se opõe? Não perdeu tempo em enumerar: em primeiro lugar e principalmente, ao socialismo, cuja lembrança é suficiente para levar o presidente a paroxismos de raiva que causam grandes riscos a sua pressão sanguínea. Sua segunda bête noir [besta selvagem], ele nos informa, são as burocracias globais.

Um homem com capacidades intelectuais tão destacadas quanto Donald Trump dificilmente pode estar desavisado de que as Nações Unidas são a burocracia global por excelência. Essa omissão não resulta do esquecimento. Como os monarcas Bourbon, aos quais ele se parece em tantos aspectos, Donald Trump não aprende nada e não esquece nada. Seu estilo de nacionalismo raivoso, que é somente a expressão do desejo do imperialismo estadunidense de colocar todo o globo terrestre sob o tacão de suas botas, é apenas o lado oposto da moeda. Do outro lado estão a profunda desconfiança dos aliados, que não lambem a bota com entusiasmo suficiente, e o profundo ódio e aversão a organizações como a ONU.

A ONU foi fundada depois da II Guerra Mundial, supostamente para evitar futuras guerras e conflitos. O mesmo ocorreu com a Liga das Nações, que foi fundada depois da I Guerra Mundial com objetivos similares. Lênin descreveu a Liga das Nações como uma “cozinha de ladrões”. Esta descrição é uma caracterização perfeitamente adequada de sua sucessora. O histórico da ONU quanto à prevenção de guerras e conflitos não é melhor que o da antiga Liga das Nações. A ONU nunca evitou qualquer guerra, embora tenha se envolvido em mais de uma.

Os fundadores da ONU realmente acreditavam que poderiam constituir as bases de um governo mundial. No entanto, a ideia de um governo mundial sob o capitalismo é uma contradição em termos. O capitalismo se baseia no estado-nação, e o estatuto da organização enfatiza a soberania de cada estado membro. O mesmo estatuto pede aos membros a levar em conta e promover “os direitos e os valores humanos universais”. É impossível dizer, sem cair na gargalhada, como governos como o da Arábia Saudita podem colocar o seu nome sob tal declaração.

“Estamos apelando por um grande despertar das nações”, disse o Sr. Trump, sem fazer a mínima referência às Nações Unidas. Os EUA, disse ele, não esperam “que os diversos países compartilhem da mesma cultura, tradições ou até mesmo sistemas de governo”. Porém, elogiou os países “responsáveis” que combatem o terrorismo e outras várias ameaças. E qual desses países “responsáveis” ele escolheu para mencionar? Nada além da Arábia Saudita.

Arábia Saudita

A acusação de Trump de que o Irã patrocina organizações terroristas e ameaça nações amantes da paz como a Arábia Saudita foi como música nos ouvidos do Ministro do Exterior saudita, Adel al-Jubeir, cuja fisionomia e presença física tem uma ligeira semelhança com o renomado ator Vincent Price no papel de Drácula. O Sr. al-Jubeir quase enrubesceu de gozo com esse derrame de louvor. Exceto que, como Drácula, ele nunca foi capaz de dominar a arte de se ruborizar.

A versão conto de fadas de Trump infelizmente é a verdade em sua cabeça. Se rastrearmos os fios que unem todos os diferentes bandos de terroristas jihadistas até a sua fonte final, descobriremos que a maioria, senão todos, estão ligados não a Teerã, mas a Riad. O maior número das pessoas que realizaram o ataque terrorista de 11 de setembro sobre as Torres Gêmeas era de sauditas. Havia também jordanianos, mas nem um só iraquiano. No entanto, foi o Iraque e não a Arábia Saudita que foi invadido. No dia seguinte ao 11 de setembro, o presidente Bush ordenou que todas as aeronaves que sobrevoavam os EUA aterrissassem, com uma única exceção: os aviões que levavam cidadãos sauditas para fora dos EUA – incluindo parentes de Osama bin Laden.

Dificilmente pode ser considerado um segredo que a Arábia Saudita, junto com Israel, é agora o centro da contrarrevolução no Oriente Médio. A gang reacionária em Riad, de onde se exporta, além do petróleo, o venenoso fanatismo Wahabista, tem excelentes relações com os imperialistas do Ocidente e Israel -estabeleceram agora uma linha aérea direta. Tendo a sua disposição vastas quantidades de dinheiro, eles compram os serviços de agentes que espalham sua pervertida ideologia através de milhares de organizações: das madraças no Paquistão e das “instituições de caridade” no norte da África a movimentos jihadistas no Iraque, na Síria e na Líbia.

Os êxitos do Irã na Síria e no Iraque fizeram soar os sinos de alarme em Washington, Jerusalém e, acima de tudo, em Riad. Numa tentativa desesperada de deter a difusão da influência iraniana/xiita, o príncipe herdeiro Muhammad Bin Salman, o real governante da Arábia Saudita, decidiu lançar mais uma aventura no Iêmen, onde Teerã apoia os rebeldes Houthis.

A coalizão militar liderada pelos sauditas está engajada em uma guerra criminosa, bombardeando alvos civis, escolas, hospitais, lojas de alimentos, o suprimento de água, estradas e portos, numa tentativa de submeter a população pela fome. Naturalmente, o Ocidente permaneceu em silêncio sobre essas atrocidades, da mesma forma que permanece em silêncio sobre as barbaridades que o monstruoso regime saudita vem perpetrando contra sua própria população durante décadas.

O Ocidente “democrático”, que esbravejou sobre os reais ou alegados crimes de guerra na Síria, não é só um cúmplice silencioso dos crimes sauditas contra a humanidade, também os apoia ativamente. O governo britânico suprimiu um relatório sobre quem financia os movimentos reacionários jihadistas na Grã-Bretanha. Sabemos que a resposta é a Arábia Saudita, mas a ocultam deliberadamente.

A monarquia saudita é o regime mais vicioso, corrupto, cruel e degenerado que se pode imaginar. Entre os delicados costumes desse paraíso Wahabista, encontramos a flagelação, a amputação de membros do corpo, a lapidação até a morte, a decapitação e a crucificação. Mas o amável e atencioso Sr. Trump não espera que seus amigos sauditas “compartilhem da mesma cultura, tradições ou mesmo sistemas de governo”, e com isso ele quer dizer: não há necessidade de democracia na Arábia Saudita; por favor, continuem cortando cabeças, decepando mãos e pés e crucificando quantas pessoas desejarem – contanto que não pises em meus pés.

Entretanto essas aventuras militares custaram caro aos amados sauditas. Queimaram os dedos na Síria, onde junto aos seus aliados ganharam um nariz sangrando. Agora, estão enfrentando a derrota no Iêmen.

Venezuela

Procurando no salão com seus olhos arregalados, como um abutre buscando um jantar fácil, Trump fixou o seu olhar acerado na Venezuela, que ele vê como um exemplo de tudo o que ruim no “socialismo”, que ele atacou como uma “ideologia fracassada”. Isso era claramente para ser o ponto alto de sua mais dramática intervenção na ONU. Ele declarou:

“A América está do lado de todas as pessoas que vivem sob um regime brutal”, declarou ele. “Nosso respeito pela soberania também é um chamado à ação. Todas as pessoas merecem um governo que cuide de sua saúde, de seus interesses e de seu bem-estar, incluindo sua prosperidade”. Como isso se ajusta a sua declaração anterior de que ele não espera que todos os países “compartilhem da mesma cultura, tradições ou mesmo sistemas de governo?”

Há muitos anos, Henry Ford disse aos seus clientes que poderiam ter um carro da cor que desejassem, desde que fosse preta. Agora, o Sr. Trump informa ao mundo inteiro que ele pode ter qualquer sistema que desejar, desde que seja o capitalismo. Para reforçar este ponto, ele emitiu um anátema geral contra o socialismo e todas as suas obras:

“Da União Soviética à Cuba, Venezuela – onde quer que se tenha adotado o socialismo ou o comunismo, se produziram angústia, devastação e fracasso. Os que pregam os princípios dessa ideologia desacreditada somente contribuem para o sofrimento continuado das pessoas que vivem sob esses regimes cruéis. A América está do lado de todas as pessoas que vivem sob um regime brutal.”

“O problema na Venezuela não é que o socialismo tenha sido mal implementado, mas porque o socialismo foi fielmente implementado”, trovejou Trump. Era este o arremate que se supunha iria elevá-lo às alturas: um verdadeiro tour de force do gênio do roteirista. Detendo-se por um instante, o presidente, com a mandíbula projetada vários centímetros à frente, com os olhos fixos à meia distância, esperou pelos aplausos estrondosos que certamente celebrariam sua inspirada frase.

Esperou e esperou. Passou-se um segundo, parecendo uma eternidade, logo outro, em seguida outro. Mas os aplausos não vieram. Um silêncio dolorosamente desconfortável desceu sobre o hall da Assembleia das Nações Unidas em Nova Iorque – somente interrompido por alguns risos dispersos, quando alguns dos presentes começaram a se dar conta do dilema do presidente. Finalmente – depois de Trump esperar desesperadamente por vários e longos momentos – algumas almas bondosas no hall aplaudiram quietamente. A debilidade dos aplausos foi um testemunho suficiente do seu fracasso.

Os aplausos que recebeu devem ter vindo das cadeiras de Israel, Arábia Saudita, Egito e Filipinas, com Theresa May e Boris Johnson aplaudindo o máximo que podiam na esperança de que o seu patrão de Além-Mar os ouvisse e se regozijasse da relação especial viva e boa que mantém com o Reino Unido – isto é, a relação entre um cachorrinho de estimação e seu amo.

Embora pareça ter escapado à atenção de Donald Trump, o sistema que realmente fracassou no que diz respeito à raça humana não foi o socialismo, mas o capitalismo. Foi a chamada economia de livre mercado, da qual ele está tão enamorado, que não trouxe nada mais que angústias, devastação e fracassos ao mundo inteiro, particularmente desde que as economias de mercado colapsaram tão espetacularmente há 10 anos. Os problemas da Venezuela não foram causados por muito socialismo, e sim, pelo contrário, por pouco socialismo.

A Revolução Bolivariana alcançou muito em termos de reformas da educação, da habitação e da saúde – áreas essas que, nos EUA, se encontram em condições bárbaras e indignas de um país avançado e rico, e que, sob Donald Trump, caminham para se tornar ainda pior. Mas, infelizmente, a Revolução Bolivariana não foi levada à conclusão lógica: à total eliminação da propriedade privada da terra, dos bancos e das principais indústrias.

O resultado é a atual situação caótica em que a anarquia capitalista combinada à sabotagem deliberada da burguesia contrarrevolucionária, auxiliada pelo imperialismo estadunidense, ameaça destruir a Revolução e lançar a sociedade venezuelana na obscuridade. Para demonstrar seu fervoroso apoio a essa valorosa causa, o Senhor Trump exigiu a imposição de sanções contra a Venezuela, para sublinhar a mensagem de que o “socialismo” invariavelmente traz em sua bagagem “sofrimento contínuo para o povo”, junto com “angústias, devastação e fracasso”. E, se não fracassar rápido o suficiente, Washington lhe dará um forte pontapé para fazê-la fracassar mais rápido.

“América primeiro”

The Economist considerou que esse foi “um discurso desalentador e desconcertante de se ouvir de um presidente americano”. Mas por quê? Foi um discurso que revelou a essência íntima do imperialismo americano. Mostrou a sua verdadeira e feia face, gananciosa, egoísta e predadora. Desnudou a sua alma em toda a sua obscuridade. Sua moralidade é a moralidade do bandoleiro que está disposto a cometer qualquer crime, por mais vil que seja, desde que sirva ao objetivo principal da vida, que é o de enriquecer-se à custa dos outros. Este é precisamente o significado de “América primeiro”.

O ideal declarado de Trump é o dos resistentes e autossuficientes pioneiros que construíam cabanas de troncos com suas próprias mãos e nunca receberam um centavo em pagamentos de assistência social do estado. Ele esquece de mencionar o pequeno detalhe de que eles limparam a região selvagem, não só de cactos e búfalos como também das infelizes pessoas que a ocupavam por centenas de anos antes que o nome de Colombo fosse ouvido.

Na realidade, essas belas frases sobre autossuficiência devem-se à nostalgia de uma vida que agora se encontra em um passado meio esquecido e que pertence aos livros de história – relembrado através da névoa do sentimentalismo cor de rosa. É uma reflexão do espírito muito moderno de egoísmo e ganância que motiva gente como Donald J. Trump. A estreiteza mental nacional disfarça-se de patriotismo, que, como sabemos, é o último refúgio de um canalha.

A fria indiferença ao sofrimento humano esconde sua face repulsiva por trás da exigência de que os pobres, os doentes e os mais velhos se juntem e dependam de seus próprios meios, embora não possuam nenhuns meios onde se apoiar. Essa é a filosofia do livre mercado que leva as pessoas enfermas a morrer nas ruas em vez de lhes oferecer assistência médica. O juramento de Hipócrates, que declara que a vida humana é sagrada, é substituído pela carteira de dinheiro e pelo saldo bancário.

O plano de saúde de Obama fez muito pouco para alterar essa situação atroz. Entretanto mesmo isso é demasiado para Donald J. Trump, que chuta a muleta de um inválido e lhe diz para se equilibrar sobre os seus pés. O burguês liberal considera tudo isso “desalentador e desconcertante”. É assim porque não lhe agrada que a face real do sistema que defendem seja exposta ao público. Gostariam que ficasse permanentemente escondida por trás de uma fachada falsa de moderação, doçura e luz. Era esse o significado de Hillary Clinton e Barack Obama, que essencialmente serve o mesmo remédio de Trump, tentando disfarçar o seu sabor adicionando uma boa dose de sacarina.

Ao ser tão franco sobre a natureza real, objetivos e métodos do capitalismo, o Sr. Trump prestou ao mundo um serviço real, embora sem querer fazê-lo. Quanto ao conto de fada, gostaria de dizer que no final todos viveram felizes para sempre. Mas nessa questão devemos manter uma dúvida razoável…