Keynes: o capitalista utópico e impotente oráculo da desgraça

O crash de 2008 e a crise do coronavírus reavivaram o interesse nas teorias de J.M. Keynes, o economista liberal inglês. Mas uma olhada na vida e nas ideias de Keynes mostra que ele não era amigo da classe trabalhadora. Precisamos do socialismo, não do keynesianismo.

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Somos todos keynesianos agora!” Foi o que teria dito o presidente Richard Nixon em 1971, quando seu governo republicano da época interveio para resgatar a economia americana.

O desemprego e a inflação estavam em alta, algo que os modelos econômicos tradicionais diziam que não poderia acontecer. A força e a estabilidade do dólar estavam sendo questionadas. E o sistema de Bretton Woods que sustentou o boom do pós-guerra e a hegemonia imperialista dos EUA estava à beira do colapso.

Na realidade, a citação provavelmente é apócrifa. No entanto, representa uma verdade reveladora: que os políticos burgueses de todos os matizes e cores estão – em face da crise – dispostos a utilizar todos os recursos do Estado para sustentar o capitalismo.

Avance quase quatro décadas e a validade dessa afirmação está mais uma vez à mostra. Treze anos depois do grande crash de 2008, quando governos em todo o mundo despejaram dinheiro dos contribuintes nos bancos para evitar uma implosão financeira, e a história está se repetindo com a crise do coronavírus.

No total, mais de 16,5 trilhões de dólares em apoio estatal foram até agora investidos na economia global durante o curso da pandemia. E, nos EUA, o presidente Biden está pressionando por mais 4,5 trilhões em gastos – além do pacote de estímulo de 1,9 trilhão já promulgado em março deste ano, sem mencionar os trilhões entregues pelo governo Trump na forma de cheques para famílias e financiamento de emergência para empresas.

O Estado intervindo para administrar o capitalismo; governos tomando empréstimos e gastando para salvar o sistema: este é o legado pelo qual John Maynard Keynes, sem dúvida, sempre será lembrado.

E é um legado que foi calorosamente abraçado pelos líderes do movimento trabalhista de hoje, que há muito abandonaram o apelo ao socialismo genuíno.

Em vez de lutar para transformar a sociedade, os líderes reformistas agora se resignam apenas a tentativas fúteis – mas supostamente “realistas” – de consertar o capitalismo. E, ironicamente, são às teorias de um economista autoproclamado burguês liberal que essas damas e cavalheiros recorrem em seus esforços para justificar sua concordância.

Mas, como The Price of Peace – uma biografia de Keynes lançada recentemente – demonstra, o inglês e suas propostas nem sempre estiveram na moda. Na verdade, durante a maior parte da vida de Keynes, ele foi ignorado pela classe dominante, que considerava suas divagações como “declarações extremas e imprudentes”.

Como o próprio Keynes foi forçado a admitir, escrevendo em 1931 no prefácio de seus Ensaios sobre a Persuasão, seus conselhos e advertências”pragmáticos” às elites nada mais eram do que “os grasnidos de uma Cassandra que jamais poderia influenciar o curso dos acontecimentos a tempo”.

Mais tarde, as ideias de Keynes tornaram-se muito populares entre economistas e políticos.

Para os socialistas, no entanto, longe de oferecer uma solução para as crises que a humanidade enfrenta, o keynesianismo é um programa projetado para salvar um sistema falido. Os trabalhadores e a juventude deveriam virar as costas a essas ideias e, em seu lugar, lutar por uma ruptura com o capitalismo – pela revolução socialista.

Liberalismo e Utopia

John Maynard Keynes foi um verdadeiro produto de seu tempo e de suas condições. Nascido em 1883 em uma família acadêmica e educado em Eton e Cambridge (originalmente em matemática), “Maynard” sempre se sentia mais confortável quando esfregava os ombros com outros membros da elite da torre de marfim.

Enquanto estudava no King’s College, em Cambridge, ele se tornou presidente da câmara de debates da universidade e também de seu Clube Liberal. E ele logo foi reconhecido por seus pares, que o convidaram a se juntar à sociedade secreta dos “Apóstolos” – um grupo exclusivo de intelectuais, dominado na época pelas filosofias abstratas e formalistas de G.E. Moore e, mais tarde, por pensadores semelhantes, como Bertrand Russell.

Foi por meio dos “Apóstolos” que Keynes formou amizades que mais tarde seriam conhecidas coletivamente como “The Bloomsbury Group”, cujos outros membros incluíam o romancista E.M. Forster e a escritora Virginia Woolf.

Embora alguns desses boêmios e artistas fossem deixados de lado por acontecimentos posteriores na vida, a característica dominante do Grupo era o “individualismo insuperável”, como o próprio Keynes reconheceu em um discurso intitulado My Early Beliefs, proferido em 1938.

Além disso”, enfatizou Keynes com orgulho, “nossa filosofia … serviu para proteger a todos nós do … marxismo”.

“[Nós] permanecemos – não estou certo em dizer todos nós? – totalmente imunes ao vírus, tão seguros na cidadela de nossa fé definitiva quanto o Papa de Roma na sua”.

Ao mesmo tempo, Keynes confessou: “Estávamos entre os últimos utópicos … que acreditam em um progresso moral contínuo em virtude do qual a raça humana já consiste de pessoas confiáveis, racionais e decentes, influenciadas pela verdade e por padrões objetivos … ”.

A este respeito, JMK representou o crepúsculo do liberalismo, com sua crença idealista em “verdades eternas”, “valores universais” e “indivíduos racionais” – uma filosofia que, em última análise, refletia as necessidades e os interesses materiais da burguesia em seu passado apogeu.

E foi um idealismo utópico que ficaria com Keynes pelo resto de sua vida, como veremos, levando-o a ser constantemente rejeitado por uma classe dominante que pensava não em termos de “racionalidade” e “decência”, mas na cálculo duro e frio da “realpolitik” capitalista.

Interesses de classe

Keynes queria desesperadamente retornar à “Idade de Ouro” do século 19: uma época em que cavalheiros “civilizados” como ele viviam uma existência pacífica – nas costas da classe trabalhadora e das massas coloniais, é claro.

Que episódio extraordinário no progresso econômico do homem daquela época, que chegou ao fim em agosto de 1914!” declarou Keynes, olhando para trás no rescaldo da “Grande Guerra” – convenientemente esquecendo o fato de que foram precisamente os desenvolvimentos contraditórios deste período, durante o crescimento do imperialismo, que intensificaram os antagonismos que eventualmente explodiram com o início da Primeira Guerra Mundial.

De fato, como o biógrafo Zachary D. Carter observa, os escritos de Keynes estão “fundidos a uma nostalgia ingênua pela política pré-guerra que elude os ultrajes coloniais do século 19 para meditar sobre sua própria experiência de classe ociosa“.

Mais tarde, Carter explica, Keynes “ficou desiludido com a forma como seu país administrava seu império, mas nunca parou de trabalhar pelo ideal da Grã-Bretanha que ele valorizava quando jovem: uma nação forte conduzindo o mundo à verdade, liberdade e prosperidade”.

Esta visão tingida de rosa do Império Britânico e sua história imperialista mais uma vez destaca os reais interesses de classe que Keynes e seus colegas liberais realmente buscaram – e ainda buscam – defender os do imperialismo e da classe capitalista.

O conceito liberal de progresso de Keynes, entretanto, não era medido pelos padrões de vida das pessoas comuns, mas pela quantidade e qualidade da cultura burguesa; pela posição concedida a aqueles – como ele – nos escalões superiores da sociedade.

Na realidade, Keynes desprezava a classe trabalhadora. Para ele, “o bem-estar das massas é uma conveniência que eleva os padrões culturais das elites”, frisa Carter, “enquanto as próprias massas são um perigo que deve ser neutralizado” (Grifo nosso).

E, como para deixar alguma dúvida, em um ensaio de 1925 intitulado Am I a Liberal? (Sou um Liberal?), o economista inglês afirmou categoricamente seu desdém pelo ascendente Partido Trabalhista e pela classe trabalhadora, em termos inequívocos:

O [Partido Trabalhista] é um partido de classe, e a classe não é minha classe. Se pretendo perseguir interesses setoriais, devo perseguir os meus próprios. Quando se trata da luta de classes como tal, meus patriotismos locais e pessoais, como os de todos os outros, exceto alguns zelosos desagradáveis, estão ligados ao meu próprio ambiente. Posso ser influenciado pelo que me parece justiça e bom senso; mas a guerra de classes vai me encontrar do lado da burguesia educada”. (Grifo nosso).

Essas palavras, por si só, deveriam ser suficientes para demonstrar que Keynes não era amigo do movimento operário e da classe trabalhadora.

Guerra e Paz

Depois de se graduar em Cambridge, Keynes ingressou no serviço público como escriturário no India Office, antes de regressar à sua alma mater para seguir a carreira acadêmica.

Quando a Primeira Guerra Mundial estourou em 1914, Keynes foi chamado de volta a Londres para ajudar o governo a sustentar o padrão ouro na Grã-Bretanha, que estava sob pressão devido à turbulência financeira que a guerra trouxe.

Keynes e o resto do grupo de Bloomsbury eram todos tipos nominalmente pacifistas. Mesmo assim, depois de salvar a City of London [Centro financeiro de Londres], Keynes passou o resto dos anos de guerra no Tesouro de Sua Majestade, aconselhando o governo sobre como financiar seus esforços militares imperialistas.

Foi um emaranhado extraordinário de convicções”, escreve Carter em The Price of Peace. “Keynes arrecadou dinheiro para o esforço de guerra ao mesmo tempo em que tentava privar o exército britânico de seus soldados. Ele estava enojado com o chauvinismo nacionalista dos políticos britânicos, mas estava ajudando esses mesmos líderes a ganhar uma guerra pelo território imperial. Keynes estava em guerra consigo mesmo”.

Como recompensa por este trabalho, Keynes foi promovido a uma posição que mais tarde ajudaria a impulsioná-lo à fama global: como representante oficial do Tesouro na Conferência de Paz de Paris de 1919, onde o infame Tratado de Versalhes foi negociado.

Keynes observou a conferência de perto, com acesso às discussões e documentos oficiais. Com base nisso, ele foi capaz de produzir uma crítica contundente ao Tratado e seus principais protagonistas, intitulada As Consequências Econômicas da Paz. Esta foi publicada no mesmo ano, com grande aclamação.

O livro se tornou um best-seller internacional. Nele, Keynes denunciou os líderes aliados – em particular Clémenceau, o primeiro-ministro francês – que ele acreditava ter elaborado um acordo destinado a implacavelmente “enfraquecer e destruir a Alemanha de todas as maneiras possíveis“, no interesse do imperialismo francês, britânico e americano.

A vida futura da Europa não era preocupação deles; seu meio de vida não era sua ansiedade”, escreveu Keynes. “Suas preocupações, boas e más por igual, relacionadas com fronteiras e nacionalidades, com o equilíbrio de poder, com o engrandecimento imperial, com o enfraquecimento futuro de um inimigo forte e perigoso, com a vingança e com a transferência, pelos vencedores, de seu insuportável fardo financeiro sobre os ombros dos derrotados”.

Enquanto isso, os políticos britânicos não eram menos culpados do que os franceses, acreditava Keynes. O primeiro-ministro liberal Lloyd George, por exemplo, estava sob pressão dos conservadores em casa para “espremê-la [a Alemanha] até que se possa ouvir o soar das pepitas”.

Juntos, afirmou Keynes, Lloyd George, Georges Clémenceau e seu homólogo americano, o presidente Woodrow Wilson, trariam uma “paz cartaginesa”, baseada na ruína da Alemanha e de seu povo. As reparações exigidas pelos Aliados, mostrou o economista inglês, eram simplesmente impagáveis. Isso, previu Keynes profeticamente, abriria o caminho para mais animosidade e antagonismo por toda a Europa.

O pessimismo de Keynes logo foi confirmado. Em bancarrota e quebrada, a República de Weimar recorreu à impressão de dinheiro para saldar suas dívidas. Seguiu-se a hiperinflação e o terrível empobrecimento.

Isso, por sua vez, pavimentou o caminho para um surto de luta revolucionária e, quando este foi derrotado, para a ascensão do fascismo e o ressurgimento das ambições imperialistas alemãs em um nível ainda mais alto, sob a bandeira do nazismo.

Medo da revolução

As Consequências Econômicas da Paz entraram para a história por suas críticas fulminantes aos líderes europeus, ao lado de seus ataques agudos à Liga das Nações por ser “uma sociedade poliglota difícil de manejar … em favor do status quo”.

Mas esta não foi a polêmica anti-establishment que posteriormente foi pintada. Em vez disso, o livro de Keynes foi o primeiro de muitas advertências ingênuas e idealistas oferecidas pelo adivinho liberal ao longo de sua vida, todas concebidas como apelos desesperados às elites políticas, com o objetivo de evitar um desastre potencial.

É importante ressaltar que não era tanto a dizimação dos padrões de vida alemães que preocupava Keynes, mas o medo da potencial onda revolucionária que isso provocaria.

Enquanto escrevo, as chamas do bolchevismo russo parecem, pelo menos por enquanto, ter se extinguido”, afirmou Keynes. “Mas quem pode dizer quanto é suportável, ou em que direção os homens buscarão finalmente escapar de seus infortúnios?”

Como Carter observa em sua biografia, Keynes gostava de se ver como um homem progressista esclarecido. Mas sua perspectiva sobre os eventos sempre foi profundamente influenciada pelo conservadorismo reacionário de Edmund Burke, cujos escritos o atraíam quando estudante.

Isso, por sua vez, refletia sua própria posição e formação de classe privilegiada, da qual ele nunca se separou. E essas opiniões vieram apoiar todos os conselhos que Keynes deu à classe dominante.

No final das contas, Carter afirma corretamente, “Keynes fez suas proposições radicais [a partir de As Consequências Econômicas da Paz] em um esforço para preservar o que poderia ser salvo do status quo, que ele acreditava estar enfrentando uma ameaça existencial”.

Keynes elaborou um coquetel filosófico inovador”, continua Carter. “Como Burke, ele temia a revolução e a convulsão social. Como Karl Marx, ele imaginou uma grande crise no horizonte para o capitalismo. E como Lenin, ele acreditava que a ordem imperialista mundial havia atingido seu limite final”.

“Mas, sozinho entre esses pensadores, Keynes acreditava que tudo o que era necessário para resolver a crise era um pouco de boa vontade e cooperação. A calamidade que ele previu em 1919 não era algo inevitável, embutido na lógica fundamental da economia, do capitalismo ou da humanidade. Foi apenas um fracasso político, que poderia ser superado com a liderança certa.
“Enquanto Marx havia clamado por uma revolução contra uma ordem capitalista irracional e rota, Keynes se contentou em denunciar os líderes em Versalhes e pediu revisões do tratado. Tal como aconteceu com Burke, era a própria revolução que Keynes esperava evitar”.

Mas como se tornou o padrão nos anos subsequentes, os apelos de Keynes caíram em ouvidos surdos.

O que este pensador liberal nunca poderia entender ou aceitar é que a classe capitalista e seus representantes políticos não agem com base no que é “racional” ou “certo”. Eles não são persuadidos pelo poder das ideias, mas pela busca cega do lucro e do interesse imperialista descarado. E nenhuma prosa eloquente ou argumentos articulados irão mudar isso.

Em suma, a sociedade não é feita por “Grandes Homens” com ‘Grandes Ideias’, mas por uma luta de forças vivas; uma luta entre classes antagônicas, lutando por seus próprios interesses materiais.

Esta é a visão materialista da história, conforme explicado por Marx e Engels nas linhas iniciais do Manifesto Comunista: “A história de todas as sociedades até agora existentes é a história das lutas de classes”.

Mas é uma visão com a qual Keynes – sintetizando o liberalismo idealista de sua própria classe – nunca poderia se reconciliar. E assim ele ficou destinado a repetidamente desempenhar o papel de oráculo impotente; uma “Cassandra coaxante”, para sempre desprezada pelas próprias elites cujo sistema ele estava tentando salvar.

Decadência e declínio

Os comentários mordazes de Keynes em As Consequências Econômicas da Paz não o tornaram querido para o establishment britânico nos anos que se seguiram. No ostracismo de Whitehall, Keynes voltou à bolha da academia. Ao mesmo tempo, ele trabalhava como jornalista e jogador na bolsa de valores para ganhar dinheiro nos círculos da alta sociedade a que estava acostumado.

Foi a partir dessa posição confortável que Keynes construiu sua reputação como um influente comentarista político e intelectual. E na esteira da guerra, não faltaram crises para ele comentar.

A Grã-Bretanha entrou na guerra como o centro do mundo capitalista, com um poderoso império abrangendo o globo. Mas ela emergiu como uma potência de segunda categoria, incapaz de competir com o crescente poder da indústria e das finanças americanas.

Na verdade, os resultados das negociações de Versalhes foram uma espécie de verificação da realidade para os imperialistas britânicos e franceses. Enquanto reclamavam reparações da Alemanha, Londres e Paris descobriram que, por sua vez, deviam grandes somas a Washington e Wall Street. O centro de gravidade havia mudado firmemente através do Atlântico.

Mas a classe dominante britânica não podia aceitar seu papel recém-reduzido no cenário mundial. Inchado por seu próprio senso arrogante de auto-importância e grandeza imperial, o establishment superestimou a força do capitalismo britânico, que estava em declínio acentuado.

Leon Trotsky descreveu esse processo em seu livro Aonde Vai a Grã-Bretanha?, no qual ele descreveu vividamente a queda do imperialismo britânico:

“Durante a guerra, o gigantesco domínio econômico dos Estados Unidos se manifestou total e completamente. A saída dos Estados Unidos do provincianismo ultramarino mudou imediatamente a Grã-Bretanha para uma posição secundária …
“As forças produtivas da Grã-Bretanha e, acima de tudo, suas forças produtivas vivas, o proletariado, não correspondem mais ao seu lugar no mercado mundial. Daí o desemprego crônico”.

Essa decadência econômica, por sua vez, refletiu-se politicamente como uma crise do liberalismo – um credo burguês construído sobre uma força e estabilidade há muito perdidas. Como Trotsky astutamente observou:

“A ruptura do Partido Liberal coroa um século de desenvolvimento da economia capitalista e da sociedade burguesa. A perda do domínio mundial levou ramos inteiros da indústria britânica a um beco sem saída e desferiu um golpe letal no capital industrial e comercial autossuficiente de médio porte – a base do liberalismo. O livre comércio chegou a um impasse.
“No passado, a estabilidade interna do regime capitalista era em grande medida assegurada por uma divisão de trabalho e responsabilidade entre o conservadorismo e o liberalismo. A ruptura do liberalismo expõe todas as outras contradições da posição mundial da Grã-Bretanha burguesa ao mesmo tempo em que revela a crise interna do regime”.

Essa volatilidade econômica e política levou a uma série de eleições entre 1922 e 1924. Um Partido Liberal em decadência estava rapidamente perdendo terreno para um Partido Trabalhista em ascensão, indicando a crescente organização e radicalização da classe trabalhadora.

Na turbulência, os conservadores conseguiram passar, com Stanley Baldwin formando um governo de maioria a partir das eleições gerais de 1924. Mas com o capitalismo britânico desmoronando, isso provaria ser uma crise do governo conservador do começo ao fim.

Churchill e o ouro

A principal questão enfrentada pelo governo conservador era o que fazer a respeito da relação da Grã-Bretanha com o padrão-ouro. Para o establishment, não se tratava de uma mera questão econômica, mas de orgulho e prestígio.

A Grã-Bretanha havia efetivamente espalhado e administrado o padrão-ouro no século 19, devido ao domínio do Império, que fornecia uma base relativamente sólida para o comércio mundial (no interesse dos industriais e financistas britânicos, é claro). Mas com a eclosão da Primeira Guerra Mundial, o governo suspendeu o padrão-ouro, que estava entrando em colapso em face da turbulência financeira.

Ao mesmo tempo, a guerra expôs as fraquezas do capitalismo britânico, que não era mais competitivo em comparação com seus rivais americanos e alemães. E, no entanto, não houve nenhum realinhamento em termos do valor da libra para refletir essa nova realidade.

A arrogante classe dominante, determinada a devolver ao país suas antigas glórias, insistiu que a Grã-Bretanha deveria retornar ao padrão-ouro na taxa de conversibilidade anterior à guerra. Para o estabelecimento, Carter explica, “o padrão-ouro carregava um profundo significado social”, expressando o “antigo princípio do liberalismo iluminista”.

“O ouro representava um estado normal de coisas no qual o mundo deslizava inexoravelmente para a paz, prosperidade e progresso. E uma vez que o sistema pré-guerra entrou em colapso em seu apogeu, um retorno ao padrão-ouro foi visto como uma oportunidade de reviver uma glória perdida, para provar que havia algumas coisas que nem mesmo a Grande Guerra poderia destruir.

“Para banqueiros proeminentes, observou Keynes, restaurar o valor do ouro da libra era uma questão de ‘prestígio nacional’ – de garantir uma Grã-Bretanha ‘mais gloriosa’”.

Ao lado dessa pompa nacionalista, a pressão da City of London também teve seu papel. Afinal, qualquer desvalorização da libra significaria que as dívidas existentes – devidas aos banqueiros – seriam liquidadas.

Os grandes mais sofisticados da City”, continua Carter, “acreditavam que se Londres esperava recuperar o poder financeiro que havia cedido a Wall Street durante a guerra, teria que provar que investir na Grã-Bretanha era uma aposta melhor do que investir nos Estados Unidos Estados”.

“Isso significava demonstrar aos mercados financeiros globais que o governo britânico não permitiria que nada desvalorizasse seus investimentos em dinheiro ou em dívida britânica – nem mesmo a guerra”.

E assim, em 1925, os conservadores introduziram o British Gold Standard Act, atrelando a libra esterlina ao ouro na velha taxa de antes da guerra.

Keynes se opôs veementemente à mudança e expressou suas preocupações com antecedência em várias ocasiões. Em uma série de artigos e discursos, ele explicou que o capitalismo britânico só poderia continuar negociando competitivamente a essa taxa amplamente supervalorizada implementando uma política de “desvalorização interna” – isto é, atacando os salários e as condições dos trabalhadores.

Podemos buscar a todo custo restaurar o equilíbrio pré-guerra de grandes exportações e grandes investimentos estrangeiros”, declarou Keynes, “mas aqueles que pensam que um retorno ao padrão-ouro significa um retorno a essas condições são tolos e cegos. O retorno ao ouro tornou isso impossível sem um ataque geral aos salários”.

O Chanceler do Tesouro da época não era outro senão Winston Churchill. E em uma referência a seu próprio trabalho anterior, Keynes apontou o tiro contra o chanceler conservador em um ensaio intitulado The Economic Consequences of Mr Churchill.

A política só pode alcançar seu fim intensificando o desemprego sem limites”, escreveu Keynes em sua última polêmica, “até que os trabalhadores estejam prontos para aceitar a redução necessária dos salários monetários sob a pressão de fatos concretos”.

Como sempre, no entanto, Keynes era cego ante os insensíveis interesses econômicos que estavam por trás da decisão de Churchill. “Por que ele [Churchill] fez uma coisa tão boba?”, perguntou o acadêmico de Cambridge retoricamente; “Porque … ele foi ensurdecido pelas vozes clamorosas das finanças convencionais; e, acima de tudo, porque ele foi gravemente enganado por seus especialistas”.

Keynes sempre acreditava que poderia apelar para a “razão”; que ele poderia fazer esses representantes implacáveis da classe capitalista ver o erro de seus caminhos. Mas seus esforços foram em vão.

“Por motivos de justiça social, não há como argumentar a redução dos salários dos mineiros. Eles são vítimas do rolo compressor econômico. Eles representam pessoalmente os ‘ajustes fundamentais’ arquitetados pelo Tesouro e pelo Banco da Inglaterra para satisfazer a impaciência dos pais da City …
“Eles (e outros a seguir) são o ‘sacrifício moderado’ ainda necessário para garantir a estabilidade do padrão-ouro. A situação dos mineiros de carvão é a primeira, mas não – a menos que tenhamos muita sorte – a última das Consequências Econômicas do Sr. Churchill”.

Previsão e espanto

A impotência do liberalismo utópico de Keynes é revelada aqui para que todos possam ver. E ainda mais claramente quando justaposta aos escritos de Leon Trotsky da mesma época.

Em Aonde Vai a Grã-Bretanha?, Trotsky escrevia para a classe trabalhadora, preparando e armando o movimento operário com as perspectivas e ideias necessárias à luta contra os patrões. Enquanto isso, sua contraparte liberal inglesa estava tentando persuadir os políticos conservadores a respeitar a “justiça social” – na verdade, tentando convencer tigres carnívoros a se tornarem veganos.

Mais uma vez, Keynes estava profetizando a desgraça. Mas, como acontece com suas críticas ao Tratado de Versalhes, os gritos de Keynes sobre o padrão-ouro não foram motivados pela preocupação com os trabalhadores, mas por seu medo liberal inato da luta de classes e da revolução.

Não se pode esperar que as classes trabalhadoras compreendam, melhor do que os ministros do gabinete, o que está acontecendo”, implorou Keynes em sua carta aberta a Churchill. “Aqueles que são atacados em primeiro lugar se deparam com uma depressão em seu padrão de vida … Portanto, eles são obrigados a resistir enquanto podem; e deve haver guerra, até que aqueles que são economicamente mais fracos sejam derrotados” (Grifo nosso)

Tanto Trotsky quanto Keynes, então, tiveram a clarividência de ver a luta de classes que estava se formando na Grã-Bretanha. Na verdade, apenas um ano depois desses escritos acima, em 1926, o país foi abalado pela Greve Geral.

Mas, ao contrário de Trotsky, que estava armado com a teoria marxista, o ingênuo Keynes ficou surpreso com o que percebeu ser teimosia e estupidez incompreensíveis da classe dominante. E assim ele foi condenado a soprar e bufar, desoladamente, de raiva.

Keynes acreditava que a greve foi um desastre social”, explica Carter em sua biografia, “causada não por algum conflito historicamente inevitável entre a classe trabalhadora e o regime capitalista, mas por erro intelectual direto”.

“Churchill e o Banco da Inglaterra estavam simplesmente errados e se recusaram a dar ouvidos à razão. Keynes havia oferecido o que estava se tornando sua formulação política clássica: perseguir o objetivo conservador de evitar uma revolta de classe implementando uma reforma não ortodoxa de esquerda – rompendo com o padrão-ouro.
“E Churchill o rejeitou, não porque ele estivesse corrompido por interesses adquiridos ou solidariedade de classe com os ricos, mas porque ele simplesmente não pensava corretamente. Ele poderia ter sido convencido do contrário.
“Havia mais do que um toque de ingenuidade na fé de Keynes no poder das ideias e da persuasão, mas suas esperanças de um processo intelectual descansavam em homens razoáveis ​​no governo, e não na suíte executiva”.

Ironicamente, como com seus “resmungos” sobre as reparações de guerra, Keynes foi amplamente justificado pela história. Churchill mais tarde admitiu que foi um erro amarrar a libra ao ouro em níveis tão elevados, devido à severa austeridade e aos efeitos deflacionários que isso acarretava. E a própria proposta alternativa do economista para uma “moeda administrada” é efetivamente o que a Grã-Bretanha, os EUA e outros países monetariamente “soberanos” têm agora em vigor.

No entanto, o fato é que as sugestões de Keynes foram rejeitadas pela classe dominante – um padrão que se tornaria muito familiar para ele ao longo de sua vida. E assim é com todos os comentaristas liberais histéricos de hoje, que condenam inutilmente a “loucura” dos “populistas”, pedindo que as “pessoas sensatas” assumam o comando.

Seus lamentos patéticos, nas palavras do Bardo, são “cheios de som e fúria, sem significar nada”.

A Teoria Geral

Enquanto o capitalismo britânico declinava ao longo da década, a América estava experimentando as emoções vertiginosas dos “loucos anos 20”. A folia se transformaria em lágrimas, no entanto, com o Crash de Wall Street de 1929, que deu início à Grande Depressão – a crise mais profunda da história do capitalismo.

Aqui não é o lugar para elaborar as razões para o Crash, que explicamos detalhadamente em outro lugar. Nem é necessário repetir aqui a crítica marxista da magnum opus de Keynes, sua Teoria Geral do Emprego, Juros e Dinheiro. Para isso, recomendamos nosso artigo aprofundado sobre Marx, Keynes, Hayek e a Crise do Capitalismo.[1]

O que vale a pena discutir aqui é o impacto que as ideias de Keynes tiveram neste período.

A Teoria Geral foi uma obra forjada no cadinho da Depressão, com seus níveis nunca vistos de desemprego em massa. Nele, Keynes identificou corretamente a espiral descendente observada em uma recessão: trabalhadores desempregados não tinham salário para comprar bens; os capitalistas não investiriam se não pudessem vender seus produtos; e sem nenhum investimento, o desemprego aumentaria – e assim por diante.

Para romper esse ciclo vicioso, Keynes concluiu que a intervenção do Estado era necessária para salvar e administrar o capitalismo; que os governos capitalistas precisariam intervir em tempos de crise para “estimular a demanda” por meio de empréstimos e gastos. Como mencionado acima, este é o legado predominante e o pilar fundamental do que tradicionalmente seria conhecido como “Keynesianismo”.

Mas o que Keynes nunca conseguiu explicar foi por que essas crises ocorreram em primeiro lugar. Nem ele considerou tal explicação necessária.

Ao contrário dos fanáticos do livre mercado libertário que o precederam, que ele considerava meros “apologistas” do capitalismo, Keynes se via como um “pragmático”. Seu trabalho não era justificar o capitalismo teoricamente, mas salvar o capitalismo na prática – salvar o capitalismo de si mesmo.

Com A Teoria Geral, Carter escreve em The Price of Peace, que Keynes “abriu a porta para um novo mundo de possibilidades políticas que tanto o sistema financeiro quanto seus críticos marxistas acreditavam ser impossível”.

“Isso significava que a sociedade poderia ser muito diferente do que era atualmente – mas também que a ordem prevalecente não precisava ser destruída ou derrubada para ser melhorada. Ele carregou as sementes de uma transformação radical por meio da preservação da ordem social existente e de suas instituições”. (Grifo nosso)

Na medida em que Keynes ofereceu uma explicação para o crash, foi puramente idealista. O problema, afirmou, era simplesmente uma “perda de confiança”, provocada por instintos de manada e “espíritos animais”.

Hoje nos envolvemos em uma confusão colossal”, escreveu Keynes em um ensaio sobre A Grande Depressão de 1930. “Neste momento, a recessão provavelmente está um pouco exagerada por razões psicológicas”.

A solução era fácil, afirmou Keynes. Os governos capitalistas em todos os lugares deveriam apenas “se unir em um esquema ousado para restaurar a confiança … que serviria para reviver a empresa e a atividade em todos os lugares, e para restaurar os preços e lucros, de modo que, no devido tempo, as rodas do comércio mundial girassem novamente“.

Aí está a solução – apenas “restaure a confiança”! Se apenas outra pessoa tivesse pensado nisso; então, todos poderiam ter evitado toda essa “confusão colossal” e voltado para casa a tempo de tomar o chá.

Mas isso apenas destaca, mais uma vez, o idealismo de Keynes e o liberalismo utópico que ele personificou. É verdade que a “confiança” desempenha um papel importante na economia de mercado, que opera anarquicamente, de acordo com os voláteis sinais de preços fornecidos pela “mão invisível”.

No capitalismo, no entanto, essa confiança tem uma base material: a capacidade dos capitalistas de obter e realizar lucros. Se houver mercados lucrativos para os patrões explorarem e nos quais venderem, então a confiança estará transbordando. Do contrário, como é o caso das crises de superprodução do capitalismo, a confiança se dissolverá e desaparecerá.

É esse mesmo idealismo que levou Keynes – e subsequentes acólitos keynesianos – a ir ao outro extremo também: ver o capitalismo como um sistema mecânico de relógio, definível por meio de equações e modelos abstratos; uma mera máquina que poderia ser gerenciada por burocratas do Estado de cima para baixo.

E é assim que hoje os livros convencionais de economia ensinam aos alunos as maravilhas da “macroeconomia”: a teoria errônea de que os bancos centrais e os funcionários do Tesouro podem determinar a produção econômica ajustando variáveis ​​como taxas de juros e níveis de tributação; uma teoria que hoje em dia está repetidamente se chocando com as rochas duras da crise capitalista.

Estímulo e austeridade

De volta à Grande Depressão. Mais concretamente, Keynes sugeriu que os governos deveriam compensar o déficit na demanda, causado pelo colapso do investimento empresarial e do consumo das famílias.

Eles deveriam fazer isso, sugeriu ele, tomando emprestado e gastando. O principal era colocar dinheiro nos bolsos dos trabalhadores, que o poderiam usar para consumir outras mercadorias, o que, por sua vez, estimularia o investimento privado e assim por diante. Dessa forma, destacou Keynes, os governos poderiam substituir o ciclo vicioso da depressão por um círculo virtuoso de crescimento.

Exibindo o cinismo característico de um liberal indiferente, Keynes era ambivalente sobre como esse dinheiro deveria acabar nas mãos dos trabalhadores.

Seria, de fato, mais sensato [pagar aos trabalhadores para] construir casas e coisas semelhantes”, declarou Keynes em sua Teoria Geral. Mas se isso não fosse possível devido a “dificuldades políticas e práticas”, então o governo deveria apenas “encher garrafas velhas com notas, enterrá-las em profundidades adequadas em minas de carvão desativadas … e deixar para a iniciativa privada sob princípios bem testados do laissez-faire desenterrar as notas novamente”.

Em outras palavras, o objetivo não era planejar a economia para atender às necessidades da sociedade. Não, o objetivo era apenas fazer com que os lucros fluíssem novamente para os cofres das grandes empresas, para que o motor gaguejante do capitalismo reiniciasse.

Infelizmente para Keynes, suas propostas não deram certo em casa. Na corrida para as eleições gerais de 1929, o economista liberal havia escrito um ensaio intitulado Can Lloyd George Do It?, no qual ele clamava por um programa “keynesiano” de investimento governamental para enfrentar o flagelo do desemprego em massa na Grã-Bretanha, que nunca tinha ido embora desde o retorno ao padrão-ouro em 1925.

Mas foi o Partido Trabalhista, não os liberais, que venceu a eleição, apesar do apoio de Keynes a este último. E, em vez de implementar suas sugestões, o Partido Trabalhista, diante da crise, renegou até mesmo suas próprias promessas de esquerda.

Diante da catástrofe econômica e sob pressão dos banqueiros, o líder trabalhista de direita Ramsay MacDonald rompeu com seu partido, cruzou o corredor e formou um governo nacional. Austeridade e ataques, não “investimento” e “crescimento”, eram os únicos pratos do menu.

O New Deal

E foi assim que Keynes olhou para o outro lado do Atlântico em busca de apoio político para suas ideias, que encontrou na forma do presidente Franklin D. Roosevelt (FDR) e seu New Deal. Afinal, Roosevelt parecia estar na mesma sintonia que Keynes com relação às causas psicológicas da crise, ao declarar que o “medo em si” era o principal problema da sociedade.

Tendo aprendido da maneira mais difícil que comentários ásperos não levavam a lugar nenhum, Keynes mudou de rumo e demonstrou um grande entusiasmo em relação a FDR. Isso pode ser visto na série de cartas que escreveu ao líder dos Estados Unidos ao longo da década de 1930, elogiando seu programa do New Deal, com títulos amigáveis ​​como Caro senhor presidente.

Caro senhor presidente”, começou Keynes em dezembro de 1933, “Você se tornou o administrador para aqueles em todos os países que buscam consertar os males de nossa condição por meio de experimentos racionais dentro da estrutura do sistema social existente” (nossa ênfase).

Observe a ênfase aqui. Mais uma vez, a principal preocupação de Keynes sobre a Grande Depressão não é seu impacto devastador na vida das pessoas comuns. Em vez disso, seu medo é que isso provoque uma reação revolucionária; que a “gripe bolchevique” se espalhará se o desemprego e a pobreza não forem controlados.

E assim ele continuou na mesma carta: “Se você falhar, a mudança racional será gravemente prejudicada em todo o mundo, deixando que a ortodoxia e a revolução lutem contra ele … Esta é uma razão suficiente para me aventurar a expor minhas reflexões a você … ”

Em 1938, no entanto, o tom cordial da correspondência de Keynes havia esfriado. Depois de vários começos estagnados e uma recuperação ocasional, a economia americana caiu novamente no outono de 1937. Roosevelt foi pressionado pelas grandes famílias financeiras, que acreditavam que o governo estava ficando grande demais para suas botas. E em vez de duplicar o New Deal, como sugeriu Keynes, o presidente estava cedendo às demandas de Wall Street.

As tentativas de massagear o ego de FDR não funcionaram melhor do que os ataques frontais anteriores de Keynes a Clémenceau e cia. No final das contas, todos esses líderes tinham uma coisa em comum: eram políticos dos grandes negócios, que respondiam às demandas dos capitalistas, não aos rabiscos de um acadêmico inglês.

[Para] o presidente”, observa Carter, “Keynes era um místico pouco prático. Embora ele insistisse … que ‘gostava imensamente’ do economista britânico, a verdade era que FDR tinha ficado aborrecido com a névoa de alta teoria em que Keynes envolvia sua conversa”.

Em particular”, continua o biógrafo, “FDR considerava Keynes politicamente ingênuo sobre a relação do presidente com Wall Street. Ele acreditava que um setor bancário hostil ao seu programa de reforma estava elevando as taxas de juros da dívida do governo”.

Há um limite prático para o que o governo possa tomar emprestado”, disse Carter citando Roosevelt, “especialmente porque os bancos estão oferecendo resistência passiva na maioria dos grandes centros”.

No final, a Depressão continuou até a Segunda Guerra Mundial. De fato, na década seguinte ao Crash de Wall Street, a economia global viu repetidas quedas agudas e repentinas – particularmente em resposta às políticas protecionistas de “empobrecer o vizinho”, que estavam sendo introduzidas pelas diferentes potências capitalistas, todas procurando exportar a crise para outro lugar.

O New Deal – o maior experimento vivo das propostas “pragmáticas” de Keynes – fracassou. Somente incorporando os trabalhadores ao exército e ao setor de armas é que o desemprego acabou se reduzindo.

Os acontecimentos demonstraram que a ideia de um capitalismo tecnocrático administrado pelo Estado só poderia ser implementada com sucesso em tempos de guerra. Essa ironia não foi desperdiçada pelo “pacifista” Keynes, como ele mesmo observou com relutância:

“Parece politicamente impossível para uma democracia capitalista organizar despesas na escala necessária para fazer os grandes experimentos que provariam meu caso – exceto em condições de guerra”.

Bretton Woods e além

Quando a Segunda Guerra Mundial começou, Keynes não era mais persona non grata entre a classe dominante. Estava claro para o sistema agora que as advertências do economista sobre o Tratado de Versalhes e o padrão-ouro estavam corretas. E ele estava ganhando um fluxo constante de seguidores na academia e entre as elites, graças à publicação de A Teoria Geral e às suas ligações com FDR.

Ao longo dos anos de guerra, portanto, Keynes foi trazido de volta ao rebanho de Whitehall, recrutado pelo governo para fornecer conselhos. E como aconteceu com a Primeira Guerra Mundial, este liberal “pacifista” utilizou sua mente econômica para ajudar os esforços de guerra britânicos.

O primeiro foi How to Pay for the War, um panfleto publicado em 1940. Neste, Keynes empregou suas novas ideias macroeconômicas para sugerir como o Estado poderia maximizar a produção industrial sem causar inflação.

Claro, questões de nacionalização, controle dos trabalhadores e planejamento socialista não entraram em suas equações. Em vez disso, os trabalhadores foram convidados a aceitar um sistema de “pagamento diferido”, a fim de limitar o consumo e, assim, colocar um freio na demanda.

Essas propostas foram posteriormente adotadas pelo governo em seu orçamento de 1941. Enquanto isso, as grandes empresas não perderam nenhuma oportunidade de ludibriar a classe trabalhadora por meio de lucros e contratos governamentais suculentos.

Posteriormente, Keynes também participou das discussões que contribuíram para o Relatório Beveridge. Isso lançou as bases para o estado de bem-estar, estabelecido pelo governo trabalhista de 1945, que trouxe o apoio “do berço ao túmulo” e o Serviço Nacional de Saúde.[2]

Mas o trabalho de Keynes nessas frentes foi atalhado por um projeto ainda maior: projetar o sistema de instituições internacionais que emergiria da guerra – o sistema de Bretton Woods.

Apesar de sofrer de problemas de saúde e velhice, Keynes foi enviado para a conferência de Bretton Woods em New Hampshire, EUA, em 1944, como principal representante e negociador do Reino Unido. E ele entrou com um plano. Como todos os planos mais bem elaborados, no entanto, o seu não sobreviveu ao primeiro contato com o inimigo – neste caso, os Estados Unidos.

Ao criar uma nova arquitetura global para o dinheiro e o comércio, Keynes acreditava que o mais importante era evitar quaisquer grandes desequilíbrios internacionais. Esses, afirmou ele, eram uma fonte fundamental de tensão entre as nações.

Portanto, eram necessárias medidas para se proteger contra grandes dívidas e déficits comerciais. A primeira etapa do plano de três partes de Keynes, então, foi para a criação de uma “União de Compensação Internacional”. Isso, sugeriu ele, efetivamente forçaria as nações a importar mais se tivessem um superávit comercial (por meio de uma reavaliação de sua moeda), e vice-versa, no caso de déficit comercial (por meio de uma desvalorização).

Ao mesmo tempo, Keynes se opunha veementemente a qualquer forma de padrão-ouro. Os eventos demonstraram que tal configuração seria muito rígida para acomodar as diferentes direções e velocidades em que várias economias nacionais poderiam – e iriam – se mover. Em vez disso, ele pediu moedas flexíveis e administradas (etapa dois).

Isso deveria incluir, propôs Keynes, a criação de uma nova moeda mundial, a ser regulamentada e distribuída por um “Banco Supranacional” (etapa três). Esse banco central internacional, por sua vez, estaria disponível para ajudar os países que enfrentassem crises econômicas.

A esperança de Keynes era que isso proporcionasse aos governos nacionais a liberdade de realizar estímulos (como ele havia defendido em sua Teoria Geral) e evitar o desastre da austeridade deflacionária.

Mas os planos de Maynard estavam mortos na chegada. Como sempre, as ideias brilhantes de Keynes eram completamente abstratas e utópicas, totalmente divorciadas da realidade das relações mundiais como estas se encontravam no final da guerra. Em suma, a Grã-Bretanha não estava em condições de dizer ao seu novo irmão mais velho – o imperialismo norte-americano – o que fazer.

Na verdade”, escreve Carter, “o governo dos Estados Unidos simplesmente não tinha interesse em criar uma ordem internacional que diminuísse o poder americano. O governo Roosevelt era lúcido sobre as considerações da realpolitik do poder bruto”.

No final, nenhuma das propostas de Keynes foi adotada. “Em vez disso”, continua Carter, “todas as nações que aderiram ao projeto de Bretton Woods concordariam em tornar suas moedas conversíveis em dólares a uma taxa de câmbio fixa. O dólar, sozinho entre essas moedas, seria conversível em ouro”.

“Em vez de um banco central internacional para regular déficits e superávits comerciais, seria estabelecido um Fundo Monetário Internacional para fornecer empréstimos de emergência em uma crise [com restrições, sempre envolvendo austeridade e privatização, não estímulo]. Além disso, um Banco Mundial seria estabelecido para auxiliar na reconstrução do pós-guerra.
“Keynes havia imaginado um aparato regulatório internacional para prevenir arranjos comerciais predatórios e crises financeiras. O que ele conseguiu foi o padrão ouro com um fundo de resgate”.

Esses – o padrão do dólar, o FMI, o Banco Mundial e a Organização Mundial do Comércio (originalmente GATT, Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio) – juntos são o que agora é conhecido como sistema de Bretton Woods.

E longe de representar o ideal internacionalista liberal de igualdade e harmonia que Keynes desejava, esta configuração desde o início foi projetada exclusivamente para o benefício dos verdadeiros governantes soberanos do capitalismo global: o imperialismo dos EUA.

Como mencionado no início, na década de 1970, o projeto de Bretton Woods estava em frangalhos. Ironicamente, foram as políticas keynesianas inflacionárias de “gestão do lado da demanda” e “financiamento do déficit” no período pós-guerra que desempenharam um papel importante em sua queda.

Os gastos americanos com a guerra na Coréia e no Vietnã, entre outras coisas, tornaram o dólar uma atrelagem insustentável para o resto das moedas do mundo. A crise econômica global que ocorreu em 1973-74 foi a gota d’água.

Hoje, todas as instituições restantes do acordo de Bretton Woods também estão em desordem. O declínio relativo do capitalismo dos EUA; a ascensão do imperialismo chinês e do protecionismo internacionalmente; e mais de uma década de crise desde o crash de 2008: tudo isso reduziu a OMC – e cia a um motivo de chacota; uma casca vazia; um tigre de papel.

Keynesianismo depois de Keynes

Keynes morreu em 21 de abril de 1946 com a idade de 62 anos. Ele viveu para ver o fim da guerra e a grande vitória do Partido Trabalhista nas eleições de 1945. Mas ele não viveu para ver suas ideias adotadas pelas classes dominantes em ambos os lados do Atlântico.

A destruição da guerra e a posição hegemônica que o imperialismo norte-americano manteve globalmente proveniente dela criaram as condições para um boom sem precedentes do capitalismo mundial.

Washington forçou a abertura do comércio internacional, armado com suas instituições e regulamentos de Bretton Woods. Com dois terços do ouro do mundo em Fort Knox, o dólar foi considerado “tão bom quanto o ouro”. Isso forneceu mais uma base para a expansão maciça do comércio global no período pós-guerra, assim como o poder imperial britânico na época vitoriana havia facilitado a Era Dourada.

O aumento do comércio mundial foi impulsionado pelos novos mercados estabelecidos na esteira dos movimentos de libertação nacional nos ex-países coloniais. Por sua vez, a Grã-Bretanha e a França deram lugar a um novo império americano, com o epicentro localizado na Wall Street da metrópole.

O “keynesianismo” tornou-se a ideologia econômica definidora do boom do pós-guerra. Como Carter explica em The Price of Peace, discípulos acadêmicos como John Kenneth Galbraith e Joan Robinson – localizados nos dois Cambridges de Massachusetts (EUA) e na Grã-Bretanha, respectivamente – tentaram manter os ideais liberais de Keynes vivos e ganhar novos adeptos ao seu credo.

Mas a classe dominante acabou sendo muito mais “pragmática” do que o próprio Keynes jamais foi. Suas ideias sobre macroeconomia, despojadas de seus fundamentos filosóficos utópicos, tornaram-se uma prática padrão tanto nos ministérios do governo quanto nos departamentos de economia das universidades.

O keynesianismo, em suma, tornou-se apenas mais uma arma no arsenal da burguesia e de seus representantes políticos; outro conjunto de ferramentas para os formuladores de políticas implantarem em tempos de crise.

Empréstimos e gastos do Estado (“financiamento do déficit”); regimes monetários frouxos; e gestão de cima para baixo do “lado da demanda”: tudo isso se tornou uma prática padrão para governos tanto de esquerda quanto de direita.

E foi assim que até o reacionário republicano Reagan declarou-se convertido. Afinal, as ideias de Keynes forneceram uma cobertura teórica útil para políticos de direita que buscam aumentar os gastos militares e cortar impostos para os ricos – estes também, afirmaram, iriam “estimular a demanda”.

No entanto, à medida que o capitalismo descia ainda mais em sua época de decadência senil, essas ferramentas tornaram-se cada vez mais rudes e inúteis.

Longe de “estimular” a economia, os imensos níveis de gastos do governo são necessários hoje apenas para manter o sistema vivo. Nas palavras do keynesiano moderno, Larry Summers, estamos em uma era de “estagnação secular”.

A economia global está viciada em dinheiro barato. A dívida pública mundial total disparou para mais de 100% do PIB, como resultado do crash de 2008 e agora da crise do coronavírus. Mas todos esses estímulos e gastos trazem consigo o risco de inflação e instabilidade – como a classe dominante está descobrindo.

Em outra reviravolta do destino, o maior exemplo de keynesianismo clássico da história foi realizado durante a última década – de todos os lugares – na China. Pode-se imaginar Keynes revirando-se em seu túmulo ao pensar no Partido Comunista Chinês se tornando seus maiores líderes de torcida.

Mas, assim como com o New Deal, o programa keynesiano de Pequim também não funcionou. O estímulo estatal tornou-se um caso severo de rendimentos decrescentes. O investimento do governo resultou na construção de cidades fantasmas e estradas para lugar nenhum. Enquanto isso, a dívida total chinesa aumentou para quase 300% do PIB.

Em The Price of Peace, Carter observa que as décadas que se seguiram à crise mundial de 1973-74 foram anos tenebrosos para os verdadeiros crentes no keynesianismo. Em vez disso, o chamado “neoliberalismo” de Friedrich Hayek e Milton Friedman dominou a paisagem econômica e política.

Os keynesianos obstinados acreditavam que a crise de 2008 e a Grande Recessão que se seguiria abririam o caminho para seu retorno. Mas, em vez de promulgar políticas de “estímulo” e “crescimento”, os governos em todos os lugares realizaram programas de austeridade.

Portanto, os defensores mais vocais do keynesianismo não são mais encontrados em bancos centrais ou universidades, mas nas lideranças do movimento trabalhista. E, no entanto, como mostramos traçando a história da vida e das ideias de Keynes, a esquerda não deveria aceitar essas teorias estéreis.

Não é difícil ver, no entanto, por que as ideias de Keynes têm tanto apelo para essa camada e para os fanáticos neokeynesianos que pregam sobre as maravilhas da “Teoria Monetária Moderna”. O economista liberal estava oferecendo uma mudança aparentemente “radical” – mudança que, na raiz, refletia apenas a manutenção de um status quo rompido. E tudo isso, sem os inconvenientes da luta de classes.

Como já enfatizamos, assim como os líderes reformistas “pragmáticos” e “realistas” de hoje, Keynes não tinha fé na classe trabalhadora para transformar a sociedade. Na verdade, toda a sua vida foi passada implorando às elites e exibindo desdém pelos trabalhadores e pelo movimento sindical. Acima de tudo, o inglês tinha pavor da revolução, que queria evitar a todo custo.

Agarre a raiz

Keynes encerrou sua Teoria Geral, escreve Carter, “com um apelo aos marxistas“:

“Não despreze o poder das ideias de triunfar sobre os interesses econômicos da classe dominante [Carter parafraseando Keynes]. Os interesses investidos dos capitalistas, argumentou ele, não reinaram soberanos sobre as grandes engrenagens da história humana; as crenças e ideias das pessoas sim”.

Eles [os marxistas] poderiam escolher ignorar o sofrimento e a disfunção das últimas duas décadas sem recorrer a uma violenta revolta revolucionária”, disse o biógrafo, representando as opiniões de seu biografado. “Tudo o que eles precisavam era serem convencidos por uma ideia”.

Mas os apelos de Keynes à esquerda socialista resultaram errados. Apesar de todos os seus esforços, e como ele próprio admite, “nunca poderia influenciar o curso dos acontecimentos no tempo”.

Se as ideias de Keynes eram tão boas e os interesses de classe arraigados não estavam bloqueando sua implementação, por que ninguém as escolheu?” Carter pergunta com razão. “Porque ainda não consegui convencer nem o especialista nem o homem comum de que estou certo”, consta que o intelectual incansável respondeu a essa pergunta.

No entanto, isso não deteve o economista de Cambridge. “Em comparação com o poder de persuasão das boas ideias”, afirma Cartes, antes de citar Keynes, “o poder dos capitalistas interessados ​​em se opor é insignificante”.

E, no entanto, como Carter demonstra habilmente em sua biografia, mesmo o reverenciado “gênio” Keynes foi incapaz de persuadir a classe dominante. A cada passo, ele e suas sugestões utópicas eram rejeitadas. Seu suposto “pragmatismo” provou ser o idealismo mais irremediavelmente ingênuo.

O arco de sua vida pública, desde a eclosão da guerra até a crise financeira britânica de 1931, foi uma tentativa longa e infrutífera de dobrar a política europeia ao seu brilhantismo”, resume Carter.

“Como delegado da Conferência de Paz de Paris, ele falhou em persuadir os líderes mundiais de que uma paz duradoura na Europa exigia um compromisso público colaborativo para a reconstrução do continente. Ineficaz como um insider, ele tentou sua mão como um agitador externo, pressionando o governo como jornalista, intelectual público e magnata da mídia. Em 1932, estava claro que também nisso ele havia falhado.
“Ele conquistou o Partido Liberal no tempo em que os liberais se tornarem irrelevantes. Embora suas proclamações em As Consequências Econômicas da Paz e em As Consequências Econômicas de Mr. Churchill fossem agora sabedoria convencional para o homem da rua, o cumprimento de suas profecias tirou seus aliados políticos do poder ….
“A ruptura da Grã-Bretanha com o padrão-ouro deu ao país bastante margem de manobra para empreender um programa de obras públicas, mas nenhum entrou na agenda governamental. Todos concordaram que o Tratado de Versalhes seria um desastre, mas ninguém o havia consertado a tempo de evitar o desastre na Alemanha. [E então suas propostas foram mortas a tiros em Bretton Woods por negociadores americanos.]”

O “poder da ideia”, ao que parece, não poderia superar os interesses materiais dos capitalistas, que não são movidos por “grandes ideias”, mas pelas frias leis econômicas e pela lógica do capitalismo: a busca sem fim pelo lucro.

As ideias podem ser uma força verdadeiramente poderosa. Mas apenas ideias cujo tempo chegou, como Marx explicou: ideias que correspondem à realidade objetiva; que “agarram a raiz da questão”; que se tornam uma “força material” ao “agarrar as massas”. É isso – as lutas e movimentos das massas, não o “poder das ideias” – que é a verdadeira força motriz da história.

Keynes e suas ideias nunca puderam “agarrar a raiz da questão”: o sistema capitalista inerentemente contraditório e cheio de crises. Em vez disso, ele escreveu para o sistema, implorando que adotassem seu programa para resgatar o capitalismo.

É por isso que Keynes e o keynesianismo devem ser rejeitados pela esquerda e pelo movimento operário. Em lugar desse idealismo liberal, os trabalhadores e a juventude deveriam estudar as ideias revolucionárias do marxismo. Só assim podemos compreender o mundo – e lutar para mudá-lo.

[1] https://www.socialist.net/marx-keynes-hayek-and-the-crisis-of-capitalism-part-one.htm

[2] NHS – National Health Service

TRADUÇÃO DE FABIANO LEITE.

PUBLICADO EM MARXIST.COM

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