Grã-Bretanha: vazado o manifesto do Partido Trabalhista – uma ruptura audaz com o passado

Na terça-feira, uma fonte anônima vazou o manifesto preliminar do Partido Trabalhista para as próximas eleições gerais – sem dúvida o manifesto mais audaz e mais à esquerda que o Trabalhismo já levantou em décadas. As propostas cobrem desde a renacionalização do Royal Mail [Serviço postal nacional do Reino Unido – NDT] à restauração dos direitos sindicais e à construção de 100 mil casas municipais ao ano.

Este é um programa que poderia genuinamente galvanizar apoio ao Partido Trabalhista e que – se for ligado a um claro e ousado plano socialista – poderia proporcionar o ponto de partida para o desmonte do “sistema manipulado” que Corbyn corretamente denunciou em seus discursos.

Direita desconectada

Por si mesmo, o momento do vazamento, que ocorre antes do acordo final sobre o manifesto, lança mais luz sobre a cisão, que se transformou em um abismo no Partido Trabalhista, entre Corbyn (e seus seguidores) e a ala Blairista de direita. Enquanto isto, o Partido Tory [Conservadores], a mídia de direita e as “fontes anônimas” da direita do Trabalhismo aproveitaram-se do vazamento como prova de que a esquerda de Corbyn estava ficando radicalmente fora de contato com o público britânico.

Vários sabichões de direita consideraram o manifesto vazado como outra “carta de suicídio” do Partido Trabalhista – baseando-se no mito de que o manifesto esquerdista de 1983 do Partido Trabalhista foi a “mais longa carta de suicídio da história”, por ser demasiado radical para os trabalhadores britânicos engolir. No entanto, o que é convenientemente esquecido em tudo isto é que o Partido Trabalhista foi eleito em 1975 com um programa muito mais radical de nacionalização dos 25 monopólios mais importantes!

O problema real em 1983 foi que o Trabalhismo enfrentou a mesma sabotagem interna que enfrenta agora, com cada figura mais destacada do Partido Trabalhista, diferentemente do líder Michael Foot, minando e contradizendo o manifesto a cada passo. Ademais, o voto do Partido Trabalhista foi dividido por um grupo dissidente formado pela ala direita do Trabalhismo, o Partido Socialdemocrata – com muitos de seus membros sendo bem recebidos de volta durante os anos de Blair.

Na realidade, é a ala direita que agora evidencia o seu distanciamento do ânimo real da sociedade ao denunciar essas políticas. Políticas tais como a renacionalização dos serviços públicos básicos, o financiamento adequado do NHS [Serviço Nacional de Saúde] e o fim da crise imobiliária através da construção de residências municipais são tremendamente populares e ganharão um eco real entre os trabalhadores, os pobres e a juventude.

Os governos Conservadores causaram nas últimas décadas danos incalculáveis aos mais pobres e mais vulneráveis da sociedade, com cortes na remuneração do setor público e dos serviços de primeira linha que contrastam com a generosidade que demonstraram aos mais ricos da sociedade.

Este manifesto Trabalhista vazado tenta desfazer esse dano com uma série de movimentos audazes e radicais. Promete implementar a renacionalização do Royal Mail, das empresas de energia e ferrovias; abordar a crise da habitação através da construção de 100 mil casas municipais ao ano; abolir o pagamento de mensalidades universitárias; acabar com a privatização do NHS e aumentar o financiamento da saúde pública em 6 bilhões de libras ao ano; e recuperar e fortalecer os direitos sindicais, entre toda uma série de outras propostas.

Uma ruptura com o passado

Em seu conteúdo, não há dúvida de que este manifesto, redigido pelo responsável de política de Corbyn, Andrew Fisher, representa uma ruptura completa com o programa “levemente Tory” dos anos de Miliband e do Novo Trabalhismo. Como argumentamos antes: para que o Partido Trabalhista possa superar as contradições colocadas pelo Brexit, é necessário que Corbyn se descarte do livro de regras e lance uma ofensiva contra o sistema dos patrões com políticas socialistas claras.

Já está claro que as políticas contidas neste manifesto preliminar são tremendamente populares e falam por si mesmas, ajudando a desfazer a espessa neblina de calúnias que a mídia lança constantemente contra Corbyn. Uma pesquisa de opinião no final do artigo do Daily Mirror, que noticiou o vazamento, mostrava que 70% dos leitores apoiariam este programa em sua totalidade.

O conteúdo deste manifesto lançou o desafio diretamente aos Conservadores e à ala direita do Partido Trabalhista. Empurrou-os para trás, manobrando a bola no campo de jogo deles e forçando-os a defender o seu programa de cortes e austeridade. Agora, eles devem justificar por que estão tentando atacar a classe trabalhadora e fazê-la pagar pela crise.

Cui bono? Quem se beneficia?

Uma pergunta que muitos estão se fazendo agora: quem vazou este manifesto preliminar?

Alguns sugeriram que a esquerda em torno de Corbyn pode havê-lo feito para conter a marcha da direita trabalhista e dos Conservadores. No entanto, parece improvável que a equipe do líder Trabalhista tentasse orquestrar um vazamento tão caótico.

Este movimento se encaixa muito mais no modus operandi da ala Blairista e de sua conspiração em curso para sabotar Corbyn. De acordo com o Financial Times, a equipe de Corbyn já havia sido advertida de “vazamentos sem fim” a partir do QG do Partido Trabalhista, que é um ninho permanente de conspirações anti-Corbyn.

O objetivo desses vazamentos é claro: perturbar a campanha eleitoral; retratar Corbyn como incompetente; e promover a narrativa de uma derrota vergonhosa para os Trabalhistas em 8 de junho, com a esperança de depor Corbyn como líder depois disto.

No entanto, os Blairistas, que representam os interesses das grandes empresas no partido, estão completamente desligados da realidade das vidas dos trabalhadores comuns. Isto ficou claro quando uma fonte anônima da ala direita do Trabalhismo resumiu o seu distanciamento e desprezo pela classe trabalhadora ao caracterizar o manifesto como “uma carga de presentes para todos os grupos de interesse especiais” e nada mais que “uma preocupação irresponsável pelos pobres”!

Esses gângsters e bandidos carreiristas não têm lugar no Partido Trabalhista. No entanto, se foi realmente a ala direita que realizou este vazamento, suas ações podem explodir em suas caras, já que essas políticas serão tremendamente populares entre milhões de pobres, trabalhadores e jovens. No curso da próxima semana das negociações vigentes sobre o manifesto, vai ser extremamente difícil para a ala direita extirpar agora as propostas mais ousadas.

Compromisso

Apesar de conter muitas medidas audazes e progressistas, devemos também advertir contra os elementos de compromisso que também se encontram neste projeto de documento.

Por exemplo, em vez de simplesmente renacionalizar as empresas ferroviárias, o manifesto se compromete a continuar no ritmo de uma tartaruga. As lucrativas empresas que atualmente administram as ferrovias arrecadaram lucros enormes durante anos. Não deve haver nenhuma compensação para estes parasitas, que já se compensaram a si mesmos generosamente. Todos os serviços de ferrovias e ônibus devem ser imediatamente nacionalizados sob o controle democrático dos trabalhadores.

O mesmo deve ser dito também dos grandes monopólios de energia. Em vez de nacionalização parcial, criando empresas de energia públicas para competir contra as grandes empresas de gás e eletricidade, o Partido Trabalhista deve prometer nacionalizar os “Seis Grandes” imediatamente – e sem compensação.

No assunto da imigração também há elementos de compromisso, ao falar de “imigração controlada” como um apoio à direita.

O mais notável em termos de compromissos com a ala direita do Trabalhismo é um compromisso pela renovação de Trident, o sistema de armas nucleares da Grã-Bretanha – uma política a que o próprio Corbyn se opôs pessoalmente durante décadas; e, de forma similar, uma promessa de cumprir a meta da OTAN de gastar 2% do PIB na “defesa” militar (leia-se: invasão e ataque).

Estes são adornos dos Blairistas e estão claramente incluídos no manifesto como resultado do constante assédio da ala direita do partido. O próprio vazamento, no entanto, demonstra a futilidade da tentativa da liderança de Corbyn de tentar se comprometer e unir com a direita Blairista. Estes canalhas do establishment não ficarão satisfeitos com tais migalhas e somente ficarão felizes quando Corbyn e suas centenas de milhares de seguidores forem varridos do partido, com o controle completo mais uma vez descansando firmemente em suas garras.

Além disso, tentativas de compromisso só servem para subjugar a mensagem de Corbyn e enfraquecer o necessário golpe dos elementos mais ousados do programa. A rejeição de um segundo referendo escocês é a peça central da campanha da ala direita do Partido Trabalhista escocês, por exemplo. Esta política, ao lado do compromisso de renovação do Trident, vai cair como uma bola de chumbo na Escócia.

Quem paga?

Os meios de comunicação mais sérios das grandes empresas tiveram que permanecer bastante silenciosos sobre a questão deste manifesto vazado. A razão é clara: as audazes políticas que ele contém são extremamente populares dentro da sociedade! A ideia de renacionalização das ferrovias podem soar como Bolchevismo aos ouvidos da classe dominante, mas para a classe trabalhadora tais propostas soam como uma resposta de bom senso a anos de especulação e má administração pelo setor privado.

A principal lama que a direita lançou sobre Corbyn e McDonnel é a acusação de incompetência econômica: que os números simplesmente não batem. Os “experts” mais histéricos inclusive sugeriram que a eleição de Corbyn vai levar à hiperinflação estilo Mugabe, com um futuro governo Trabalhista recorrendo à impressão de dinheiro para realizar suas políticas.

É evidente que estas ambiciosas reformas e promessas exigem sérios níveis de investimento. Para mencionar apenas algumas propostas, o manifesto inclui: 1 bilhão de libras extras para gastos com arte; 7,6 bilhões de libras para o NHS [Serviço Nacional de Saúde – Nota do Tradutor] e cuidados sociais; e a abolição das taxas estudantis e a reintrodução dos subsídios de manutenção da educação a um custo de 10 bilhões de libras.

Isto soa como grandes números, particularmente no contexto desta era de austeridade. Mas, evidentemente, tais somas existem dentro da sociedade. A lista dos ricos de The Sunday Times anunciou esta semana que as mil pessoas mais ricas da Grã-Bretanha “valem” um total de 658 bilhões de libras – um aumento de 14% desde o ano passado! São estes indivíduos, os bilionários e multimilionários, que concentram em suas mãos toda a riqueza gerada pelo trabalho de milhões de pessoas simples e comuns, neste país e no exterior.

O manifesto promete levantar os meios necessários para a realização de seu programa através da tributação dos mais ricos na sociedade – com um aumento progressivo dos impostos sobre todas as rendas acima de 80 mil libras e o aumento do imposto sobre as sociedades a 26%.

No papel, isto parece bastante razoável. No entanto, devemos de início salientar que não são os 5% mais ricos, os que estão representados por esses que ganham mais de 80 mil libras, que concentram toda a riqueza da sociedade. Quem o faz são os mais ricos 0,1%!

O alarme foi soado pelo diretor das Câmaras Britânicas de Comércio, um porta-voz confiável dessa fina camada de parasitas. Ao ler o manifesto vazado, este representante dos patrões e dos banqueiros declarou que, “Necessitamos enviar uma mensagem de que o país está aberto para negócios depois do Brexit. Um grande aumento no imposto sobre o lucro não envia esta mensagem”.

A ameaça é simples: se o país não está “aberto para negócios”, os capitalistas simplesmente irão a qualquer lugar que seja. Já Frankfurt, Paris, Dublin e outros centros financeiros estão estendendo o tapete vermelho para o capital financeiro britânico em antecipação à catástrofe do Brexit que eles preveem que os Tories produzirão.

Combata os Conservadores com políticas socialistas!

Em poucas palavras, a única forma de se aproveitar a enorme riqueza que existe na sociedade em benefício das reformas progressistas delineadas por Corbyn e seu manifesto vazado seria um governo trabalhista socialista que nacionalizasse os principais bancos e grandes empresas, colocando-os sob o controle e gestão democráticos da classe trabalhadora.

O manifesto preliminar vazado nesta semana é um passo à frente para o movimento trabalhista – uma clara ruptura com o Novo Trabalhismo do passado. A tarefa agora é que o movimento de Corbyn se organize e se mobilize para levar esta mensagem anti-establishment às ruas e às comunidades da classe trabalhadora; ir em ofensiva contra os Conservadores e seu “sistema manipulado”; e lutar nesta eleição por um audacioso programa socialista.

Artigo publicado originalmente em 12 de maio de 2017 no site In Defence Of Marxism (www.marxist.com) sob o título “Britain: Labour’s leaked manifesto – a bold break with the past”.