Egito: à beira da guerra civil

À luz dos recentes acontecimentos no Egito, onde uma turba de policiais à paisana e mercenários organizou uma série de ataques contra o povo revolucionário que ocupa o centro do Cairo, Alan Woods analisa a situação e as relações de Mubarak com os EUA.

A revolução no Egito está atingindo um ponto crítico. O velho poder do Estado está ruindo sob as marretadas das massas. Mas a revolução é uma luta da forças vivas. O velho regime não pretende se render sem lutar. As forças contra-revolucionárias estão indo para a ofensiva. Há uma luta feroz nas ruas do Cairo entre os elementos pró e anti-Mubarak.

O “protesto dos milhões” de ontem superou todas as expectativas. Mais de um milhão de pessoas lotaram a Praça Tahrir no Cairo. Havia 300 mil nas ruas de Suez, 250 mil em Mahalla, 250 mil em Mansoura, e impressionantes 500 mil em Alexandria. Esse poderoso movimento não tem precedente na história egípcia.

Os manifestantes tomaram as ruas em todas as cidades. De acordo com algumas estimativas, quatro milhões de pessoas saíram às ruas por todo o Egito. Por outro lado, o número de pessoas que saiu às ruas em apoio ao Presidente foi pequeno e sem dúvida composto por membros da força de segurança, burocratas e suas famílias. Todos que têm algo a perder se Mubarak for derrubado.

A Revolução tem reservas enormes de apoio. No entanto, há deficiências no campo revolucionário. Como dissemos desde o início, o caráter espontâneo do movimento foi ao mesmo tempo sua principal força e sua principal fraqueza. As forças dos contra-revolucionários são numericamente mais fracas (isso foi mostrado ontem). Mas números não são tudo em uma revolução assim como numa guerra. Muitas vezes na história grandes exércitos compostos por valentes soldados foram derrotados por pequenos exércitos profissionais com oficiais competentes.

Os revolucionários têm determinação, coragem e moral. Mas os contra-revolucionários têm muito a perder: seus empregos, posições, poder e privilégios. O desespero dará a eles coragem para resistir. E eles estão organizados e bem treinados. Não há a menor dúvida de que as tropas de choque da turba que atacou os manifestantes na Praça Tahrir hoje eram policiais à paisana. Não foi uma manifestação espontânea de lealdade ao Presidente, mas uma ação cuidadosamente preparada que corresponde a um plano bem elaborado.

A estratégia de Mubarak

Na Tunísia, o Presidente Ben Ali decidiu relativamente rápido que o jogo tinha acabado e tomou um avião para o exílio junto com sua esposa e tudo o que pôde levar nos bolsos e malas. O Presidente Mubarak do Egito é mais resistente e teimoso. Ele decidiu ignorar os milhões de manifestantes nas ruas gritando por sua saída. Ele não está nem aí para o que acontece com o Egito. Ele se importa menos ainda com as preocupações de seus antigos amigos e aliados em Washington. Seu único plano é sobreviver. Sua única perspectiva é o velho slogan dos déspotas: “Après moi le deluge” – “Depois de mim, o dilúvio!”.

Agora todos perceberam que a única maneira de acalmar o país é com a saída do presidente. O auto-proclamado “líder da oposição” tem deixado claro que eles não vão sequer conversar até que Mubarak desapareça. Eles não têm escolha, pois as massas nas ruas estão vigilantes e não vão tolerar nenhum acordo.

A saída imediata de Mubarak seria, portanto, a única esperança de garantir a “transição ordenada de poder” que os EUA desejam tão fervorosamente. Mas John Simpson – editor da BBC News World Affairs, um inteligente comentarista burguês – corretamente disse: “O único problema é que ninguém conversou sobre isso com a multidão da Praça Tahrir. O slogan deles é ‘Fora Mubarak já’, e não ‘Mubarak deve sair com honra em alguns meses e seu sistema deve continuar, mas com algumas melhorias’.”

No discurso da noite passada (01/02), o Sr. Mubarak prometeu sair nas próximas eleições, e prometeu reforma constitucional, mas ele anunciou que gostaria de ficar no cargo até Setembro para supervisionar a mudança. No mesmo discurso ele disse ainda que dedicaria o tempo que lhe resta no poder para assegurar uma transição pacífica ao seu sucessor (ele não mencionou seu filho Gamal). Ele criticou os protestos e disse que sua prioridade era “restabelecer a paz e a estabilidade”. “Este é meu país. Este é o lugar onde eu vivi, lutei e defendi seu território, sua soberania e interesses, e eu morrerei sobre este solo”, disse ele.

O discurso foi visto pelos manifestantes como uma provocação. Longe de acalmar as coisas, botou mais lenha na fogueira. A reação dos manifestantes à declaração de Mubarak foi primeiramente de descrédito, e então de indignação. “O disurso é inútil e apenas inflamou nosso ódio”, disse o manifestante Shadi Morkos à Reuters. “Nós continuaremos a protestar!”. Essa foi a reação geral.

Na noite passada, os manifestantes manitveram-se acampados na Praça Tahrir dizendo que a promessa do Sr. Mubarak não era suficiente, e gritavam em coro: “Não iremos embora! Ele vai embora!” As massas não querem dar à Mubarak tempo para manobras. Eles querem que ele seja deposto e julgado. Nas demonstrações de ontem, eles enforcaram um boneco que o representava. Isso mostra o real estado de espírito nas ruas.

Todos sabem que foi ele quem deu a ordem de atirar nos manifestantes na última sexta-feira. A televisão mostrou o pai de um jovem morto em uma manifestação gritando enquanto chorava: “Eles estão matando nossas crianças”. Agora o regime está atacando pessoas desarmadas com intenções assassinas. Pessoas desarmadas estão sendo espancadas, apedrejadas e atacadas com gás na Praça Tahrir. Com este regime não pode haver trégua, nem paz, nem perdão.

Um precedente histórico

O Egito está tomado por uma batalha titânica entre a revolução e a contra-revolução. Até este momento, as manifestações tinham sido compleatamente pacíficas. Isso havia embalado as massas em uma falsa sensação de segurança. Agora todas as ilusões foram dissolvidas. As massas estão tendo o seu batismo de fogo. O plano de Mubarak é recuperar o controle da Praça Tahrir e assim voltar a dar as cartas, o que tem sido feito pelos revolucionários. A luta pelo poder começou pra valer.

A coisa toda foi cuidadosamente preparada com antecedência. Os manifestantes anti-governo estavam desarmados e despreparados para o conflito. As forças pró-governo estão armadas e estão usando bombas de gás lacrimogêneo lançadas contra a multidão, que inclui crianças. Eles entraram na Praça montados em cavalos e camelos. Com a vantagem da surpresa e de armas e táticas superiores, enquanto eu escrevo estas linhas, os contra-revolucionários estão aos poucos forçando os revolucionários a recuar. Eles prenderam manifestantes e entregaram ao Exército. Não sabemos para onde serão levados.

No contexto dessas ações, fica evidente que o discurso de Mubarak da noite passada fazia parte de um plano para fazer a revolução recuar passo a passo. Prometendo concessões e se oferecendo para deixar o governo em Setembro, ele esperava ganhar o apoio dos elementos vacilantes ou indecisos: a classe média que teme a instabilidade e anseia por “ordem”; a burguesia que teme a revolução como uma praga e quer que os negócios voltem ao normal; os retrógrados, as camadas politicamente inertes que não entendem nada e gravitam em torno dos grandes nomes, indivíduos poderosos; as classes corrompidas pelo crime e o lumpen-proletariado que vende sua fidelidade política para quem pagar mais. Essas são as reservas sociais dos contra-revolucionários que estão agora sendo mobilizadas contra a Revolução.

Há um claro precedente histórico. Em 17 de Outubro de 1905, (30 de Outubro no novo calendário) em resposta à Revolução Russa de 1905, o Czar Nicholau II emitiu o Manifesto de Outubro. O regime estava no que parecia ser uma posição impossível. Foi confrontado com um movimento revolucionário colossal e uma greve geral. Em várias áreas, os comitês revolucionários dos trabalhadores estavam tomando o controle da sociedade.

O Manifesto se comprometeu a garantir liberdade civil às pessoas: incluindo imunidade pessoal, liberdade de religião, liberdade de expressão, liberdade de reunião e liberdade de associação; e a formação de um parlamento eleito – a Duma sob sufrágio universal masculino. No papel essa foi uma grande vitória, mas na prática a democratização foi insignificante. O Czar permaneceu no poder e exerceu um veto sobre a Duma, que foi dissolvida por ele várias vezes.

O Manifesto foi uma gigantesca fraude, assim como as reformas prometidas por Mubarak, mas aquilo foi suficiente para subornar uma camada que havia previamente apoiado a Revolução. Os Liberais burgueses imediatamente apoiaram, romperam com a Revolução e fizeram as pazes com o Czar. Eles desejavam “estabilidade”, tanto quanto uma grande parte das classes médias. Sua deserção preparou o caminho para a reação contra-revolucionária.

Ao mesmo tempo em que o Czar anunciou suas reformas, ele lançou as “forças das trevas” sobre as massas: o lumpen-proletariado, a escória das favelas, os pogroms anti-semitas para afogar a Revolução em sangue. Mubarak está tentando fazer o mesmo. Na Rússia os pogroms* foram organizados pela polícia czarista. No Cairo, os ataques contra-revolucionários são organizados pelos policiais à paisana posando como “manifestantes pró-Mubarak”.

Ao mesmo tempo enquanto seus capangas quebravam crânios na Praça Tahrir, Mubarak anunciou que os bancos e lojas reabrirão no domingo, o primeiro dia útil depois do fim de semana Islâmico. A intenção é criar uma impressão de retorno à normalidade. Mas a normalidade não retornará ao Egito por um longo tempo.

Washington preocupado

Em Washington eles estão ficando cada vez mais nervosos. Quanto mais Mubarak se agarra ao poder, maior o risco do que eles chamam de “caos”. Os últimos desenvolvimentos confirmaram seus piores temores. O Egito pode estar caminhando para uma guerra civil. Os americanos não se preocupariam com isso, mas o problema é que isso destruiria todo o plano para uma “transição gerenciada”.

Em um comunicado após o discurso do Sr. Mubarak, Obama disse que os EUA ficariam contentes em oferecer assistência ao Egito durante o processo de transição. Ele modestamente declarou que seu país não tem o direito de ditar os rumos do Egito, mas que qualquer transição deve incluir as vozes da oposição e conduzir a eleições livres e justas: “Estou convencido que uma transição ordenada tem que ser significativa, tem que ser pacífica e tem que começar agora.”

Apesar das palavras tranquilizadoras do Sr. Obama sobre não ter o direito de escolher os líderes de outras nações, parece que recordamos que Washington teve alguma coisa a ver com a remoção (e julgamento) de Slobodan Milosevic, e de alguma maneira constribuiu na remoção (e execução) de Saddam Hussein. Nós também recordamos o entusiasmo com que os EUA proclamaram a política de “mudança de regime” como a melhor maneira de se livrar dos ditadores e inaugurar a “democracia” (sob controle americano).

Aqui a cínica realidade da democracia burguesa se revela em toda a sua grosseria. O imperialismo dos EUA sempre se considerou no direito de remover líderes desobedientes e substituí-los por líderes mais flexíveis. Para esse efeito, “democracia” é uma desculpa tão boa quanto qualquer outra. Mas quando se trata dos regimes amigáveis aos interesses dos EUA, todos os escrúpulos sobre democracia e direitos humanos instantâneamente desaparecem. A polícia do mundo é subitamente atingida por um ataque de legalidade escrupulosa: “não é direito de nosso país ditar o caminho para o Egito” – ou, claro, para a Arábia Saudita, Jordânia, Marrocos, ou qualquer outro dos numerosos e repugnantes regimes que são bons amigos da América no mundo.

Obama informou ter dito tudo isso ao Sr. Mubarak em uma ligação telefônica de 30 minutos. Seria interessante saber precisamente o conteúdo dessa conversa telefônica, mas nós imaginamos que ela não deve ter sido muito cordial. Quando o atual ocupante da Casa Branca diz que uma transição ordenada “tem que começar agora”, isso é próximo aos americanos ousarem dizer ao Mubarak: “Pelo amor de Deus, saia!”

Há uma boa razão para que Obama não possa dizer a Mubarak que saia, pelo menos não em público. Os americanos tem que escolher suas palavras muito cuidadosamente porque estão sendo cuidadosamente observados pelos governantes da Jordânia, Marrocos e Arábia Saudita que sentem o chão tremendo sob seus pés. Simpson, novamente, explica:

“A oferta do Presidente Mubarak de se retirar causará um impacto em todo o Oriente Médio. Até pouco tempo atrás o regime no Egito parecia-se muito com uma rocha sólida.

Agora governos autocráticos do Norte da África até o Iêmen, Síria e talvez até mesmo a Arábia Saudita buscarão maneiras de subornar o descontentamento dentro de casa.”

As ondas do impacto no Egito continuam a sacudir todos os países vizinhos. O Primeiro Ministro da Turquia, Erdogan, é o último a dar conselhos amigáveis ao amigo em apuros Mubarak. Num tom sombrio, que nós associamos com a diplomacia Otomana, ele aconselhou seu amigo no Cairo a dar um “passo diferente”. Ele esqueceu de um pequeno detalhe: que o passo deve passar por cima de um penhasco.

E agora?

John Simpson acrescenta o seguinte:

“Toda revolução, popular ou de outro tipo, chega a um ponto crítico – um ponto de ruptura – no qual o futuro é decidido. (...) O fato é que ainda não estamos no ponto de ruptura. Mas saberemos quando chegar a hora.”

De repente há uma resposta para a pergunta básica: Os manifestantes são fortes demais para a estrutura do poder ou os líderes do país podem confrontá-los?

Ele continua:

“Todas as revoluções populares compartilham certas similaridades básicas. As imensas multidões, em geral reunidas pela primeira vez, crêem que elas estão destinadas a vencer porque há muitos deles e sua determinação é muito grande. Mas se a estrutura política se recusa a aceitar a sugestão e mantém o apoio do exército e do serviço secreto, então pode sobreviver. Tudo depende do quão forte e resistente é a estrutura do governo.”

Simpson compara a situação no Egito com a derrubada dos regimes stalinistas no Leste Europeu há duas décadas. Eu fiz a mesma comparação num artigo da semana passada. Os paralelos são instrutivos. No papel esses regimes pareciam sólidos e imutáveis. Eles possuíam poderosos exércitos, polícias e serviços secretos. Mas na hora da verdade, eles mostraram-se frágeis e quebradiços.

O caso da Rússia em 1991 é ainda mais impressionante. Os manifestantes que derrubaram o velho regime eram pequenos em número e temiam a reação do governo, mas o governo era ainda mais fraco e caiu sem lutar. Agora nós vemos um fenômeno similar. No Leste Europeu as multidões mantiveram-se manifestando até que o velho regime simplesmente desabou. Isso é o que estamos vendo diante de nossos olhos no Egito. Mas tem uma diferença: Mubarak se recusa a partir.

As massas estão nas ruas em grande número, mas Mubarak desencadeou as forças da contra-revolução contra eles e o exército assiste. O que deve ser feito? O povo tem concluído corretamente que se uma semana de manifestação já empurrou o presidente até aqui, então tem todo incentivo para manter pressão sobre ele. O próximo estágio crítico será na sexta-feira, quando outra manifestação massiva acontecerá após as orações da sexta-feira. Os boatos são de que o próximo passo seja uma marcha ao palácio presidencial.

O povo exige justiça e vingança. Aqueles que são culpados por crimes contra o povo devem ser entregues a tribunais populares para que respondam por seus crimes. Isso é aplicável não somente às polícias que atiraram nos manifestantes desarmados, mas também ao homem que deu a ordem. Insurreição é a única saída. Para que isso aconteça, o movimento operário deve desempenhar um papel chave.

Foi a longa onda de greves operárias e protestos que jogou um papel-chave no enfraquecimento do regime e na criação deste movimento. Trabalhadores estão agora organizando sindicatos independentes. Eles têm o poder para paralisar o país e também para organizar a economia. Há notícias de trabalhadores ferroviários se recusando a transportar tropas e forças de segurança que seriam usadas para a repressão.

A convocação de uma greve geral nacional é a única resposta apropriada para o uso de táticas de bandido contra manifestantes desarmados. Para se preparar para isso e manter a ordem, comitês de ação devem ser criados em todas as partes (locais de trabalho, bairros e barricadas) e devem se conectar entre si em nível local, regional e nacional. Dessa maneira o povo revolucionário pode tomar o poder e eleger seu próprio representante, não aqueles “líderes” auto-proclamados ou pessoas colocadas pelo embaixador americano.

Estamos assistindo a uma ação desesperada do velho regime que tenta sobreviver. A velha ordem está parecendo um animal ferido que se recusa a morrer e está se debatendo. A nova ordem está lutando para nascer. O resultado desse conflito de vida ou morte irá determinar o destino imediato da revolução. A Revolução tem que se defender. Deve se armar para resistir aos ataques dos contra-revolucionários. Mas a melhor forma de defesa é o ataque. É hora do movimento ir além dos comícios.

O único jeito de matar a cobra é batendo em sua cabeça. Passividade é a morte da Revolução. O poder não cairá nas nossas mãos como uma maçã podre. Ao invés de permanecer na Praça Tahrir, as massas devem ir para a ofensiva, marchar ao palácio presidencial e tomar o poder. As massas revolucionárias devem confiar em suas próprias forças. Esse é o único caminho para salvar a Revolução e obter uma vitória decisiva.

Londres, 2 de fevereiro de 2011.

* Nota do tradutor: Pogrom - termo russo que significa ataque violento generalizado e massivo à população. O Czar russo promoveu pogroms contra vilarejos de judeus e operários rebeldes. Os alemães nazistas utilizaram-se desses métodos para exterminar seus opositores, comunistas e trabalhadores e também judeus antes e durante a 2ª Guerra Mundial. Destruíam inclusive as casas, as plantações, os meios de produção.

Translation: Esquerda Marxista (Brazil)