Brasil: Um Estatuto para dividir e cotas para iludir

Dois projetos de lei estão em tramitação no Congresso Nacional, o PL 73/1999 que introduz cotas “sociais” e “raciais” e o PL 3198/2000, denominado Estatuto da Igualdade Racial, que pretende dividir o Brasil em “brasileiros” e “afro-brasileiros”. Os dois projetos têm na sua essência a introdução legal de uma política de diferenciação entre os brasileiros segundo critérios “raciais”.

O PL de cotas propõe a reserva de 50% das vagas nas instituições federais de ensino superior para quem cursou todo ensino fundamental e médio no ensino público, com sub-cotas para negros e índios. E o Estatuto vai mais a fundo, propõe cotas para "afro-brasileiros" ou negros em programas de televisão; incentivos fiscais para as empresas privadas que adotarem políticas de cotas; cotas para os cargos públicos em comissão e mais ainda - se aprovado - imporá a obrigatoriedade da auto-classificação "racial" em todos os documentos civis. Todo brasileiro terá que declarar se é "afro-brasileiro" (preto ou pardo) ou "brasileiro" (todo o resto, sic).

Isso é uma verdadeira divisão da nação brasileira. O resultado deste projeto será a criação de uma oposição "legal" entre negros e brancos em todo o país. É evidente que os primeiros a sentir as conseqüências da divisão "racial" da sociedade serão os pobres, negros e brancos, na sua luta pela sobrevivência, na sua luta por emprego e na sua busca pelos serviços de Saúde, de Educação.

A divisão do povo em duas "nações" (segundo o estatuto) brasileira e afro-brasileira tem enorme similaridade com a criação artificial dos tutsis e hutus em Ruanda. Após a derrota da Alemanha na primeira guerra mundial a "Sociedade das Nações" entregou, isto mesmo, entregou Ruanda para o domínio colonial belga. Os belgas introduziram a diferenciação legal entre tutsis e hutus dois grupos sociais que coexistiam nesta região há séculos. Os tutsis e os hutus são um povo bantu e, tanto do ponto de vista da linguística, como culturalmente, não se distinguiam entre eles. A diferença física ilusória (tutsis eram vistos como mais altos e hutus eram vistos como tendo nariz mais achatado) foi utilizada para a introdução de uma divisão legal que acabou lançando hutus contra tutsis e o resultado foi milhões de mortos e atrocidades inimagináveis. Até a introdução da "identidade tutsi" ou "identidade hutu" pela potência colonial o que se conhecia era a luta dos explorados e oprimidos tutsis e hutus contra as classes dominantes (que coincidia com uma parcela dos tutsis).

Outra triste lembrança deste tipo de divisão "racial" legal foi o passaporte racial para os negros no regime do apartheid na África do Sul. Apesar de constituírem 85% da população, os negros não tinham quase nenhum direito e viviam em miseráveis condições e sua vida nada valia, ou valia menos que a de um animal doméstico. Os negros eram obrigados a carregar um passaporte "racial" que os controlava inteiramente. Foi contra estas barbaridades que se levantaram o Congresso Nacional Africano (CNA) e depois o "Movimento de Consciência Negra", criado por Steve Bantu Biko, do qual se reivindica o Movimento Negro Socialista (MNS), do Brasil. Foi preciso uma verdadeira revolução negra na África do Sul para acabar com as odiosas regras do apartheid como regime social legal.

Uma outra lembrança dolorosa para toda a Humanidade de classificação "racial" ou "étnica" foi a introdução legal da identificação dos judeus com uma estrela de Davi amarela, na Alemanha dominada pelos nazistas. As conseqüências todos conhecem.

Não é ainda evidente que aqueles que pretendem "dividir para reinar" têm trabalhado para introduzir diferenças "étnicas", "raciais", ou religiosas, com objetivo de organizar o ódio entre irmãos, o caos social e a guerra?

Não é claro, hoje, que a guerra de sérvios contra "bósnios muçulmanos" foi inventada pelas cúpulas reacionárias dos governos que se sucediam na Iugoslávia em crise?

Povos que estavam inteiramente em paz entre eles, fossem quais fossem suas origens "étnicas" ou culturais, de repente vêem a divisão organizada e propagandeada a partir das classes dominantes e dos governos, invadir sua casa, sua família, seu local de trabalho. E depois é a morte e a barbárie.

Só por estas razões este Estatuto da Igualdade Racial já poderia ser considerado um dos documentos mais reacionários já apresentados na história política contemporânea.

A questão política central é que este Estatuto liquida com uma conquista democrática fundamental que é a igualdade jurídica entre os cidadãos, ou seja, entre todos os brasileiros sem nenhuma distinção. Esta é uma conquista política histórica da grande Revolução Francesa, assim como o governo de partidos políticos e não mais do rei e dos "amigos do rei" e todas as outras liberdades democráticas.

Quando Danton, Robespierre e Saint Just arrastaram o povo francês com as bandeiras de Liberdade, Igualdade, Fraternidade e impuseram a constituição da República, deram um passo gigantesco em relação a concretizar estas aspirações populares. Eles não conseguiram ir além do que as suas condições sociais, históricas e de classe permitiam. Mas fizeram um trabalho de gigante acabando com as injustiças hediondas que se expressavam nas diferenças jurídicas entre nobres e plebeus, entre ricos e pobres. Eles impuseram que todos fossem iguais perante a lei.

Toda a esquerda mundial se constituiu nesta luta por liberdade, igualdade e fraternidade e seu aprofundamento, que só pode ser realizado com a mudança do atual regime social, só pode se consolidar e desenvolver se partir das conquistas já realizadas pelos que nos antecederam na luta. É a partir daí que se desenvolvem as teorias e as lutas políticas dos oprimidos e explorados como a conhecemos hoje em todo o mundo. Em especial a luta pelo socialismo. De Karl Marx e Engels a Lênin e Trotsky, ou seja, da Comuna de Paris à Revolução Russa e a todas as verdadeiras revoluções que os oprimidos fizeram neste planeta tinham bandeiras impregnadas deste sumo vital que é a reivindicação de Igualdade de todos perante a lei.

É tudo isto que o dito Estatuto da Igualdade Racial pretende revogar. E pretende fazê-lo através de uma aliança ONGs de todos os matizes e em nome de uma esquerda que perdeu o rumo e que nesta discussão está sendo dirigida e manipulada pelos grandes poderes internacionais do capital, seja a Fundação Ford, a ONU e sua Conferência de Durban, o Banco Mundial e seus partidos políticos e governos simpatizantes. O MNS e todos aqueles que defendem as liberdades democráticas, a existência de uma República contra a vinda das monarquias ou das ditaduras, do caos e da guerra, vai se bater para preservar nossas conquistas históricas e em especial para impedir que se organize um racismo de massas e que só pode destroçar este país e seu povo.

A manipulação e a vida real

Como sabemos toda armadilha tem que ter uma isca. São "300 anos de escravidão", " o negro é o que ganha menos", "é quem a polícia mais reprime" etc. Estas que são verdades inquestionáveis, são expressões sempre utilizadas pelos defensores dessas políticas para introduzir a discussão como se eles estivessem apontando soluções para estes problemas. O que é simplesmente falso e absurdo. Essa política baseada em cotas não é solução para nada. Ao contrário, os defensores de cotas e da divisão "racial" do país (se vencerem e forem até o fim em seus planos) serão responsáveis de crimes contra a humanidade, qualquer que seja a consciência que tenham disso.

Na verdade eles estão se prestando para desviar as lutas sociais das verdadeiras reivindicações populares. O governo abre uma saída para o vapor e dando uma "esmola" (cotas) alivia a pressão da luta por vagas para todos, por serviços públicos para todos. E tem uma enorme vantagem, pois não altera em nada o modelo econômico que cria desemprego, que sucateia os serviços públicos e não cria vagas. Enfim, não gasta praticamente um centavo a mais em educação e ainda passa por preocupado com os "pobres dos negros tão sofridos". Finalmente divide e lança todos os oprimidos e pobres uns contra os outros. Os pobres brancos vão constatar que as vagas para seus filhos diminuíram. Os pobres negros vão constatar que as vagas para os seus filhos negros agora são apenas um pequeno percentual e vão ter que disputar, concorrer contra seus irmãos de cor e de sofrimento para ver "quem chega lá". Nunca mais "vagas para todos", educação pública e gratuita para todos, pois chegou à hora de tentar se "salvar sozinho saindo pelo bico da chaleira".

Realmente é uma idéia genial dos capitalistas para avançar em seus planos. E é impressionante como gente que se diz de esquerda apóia esta manipulação antidemocrática. Afinal, com estas políticas afirmativas o governo continua alimentando o mercado financeiro, garantindo o superávit primário para pagar a dívida interna e externa e não cria mais nenhuma vaga, não cria mais empregos, não melhora o serviço público e ainda por cima cria as condições de "guerra" entre os oprimidos opondo "brasileiros" contra "afro-brasileiros".

O exemplo que dei em um debate coloca a questão na prática.

"Em São Paulo existem dois bairros: Moema e Perus. Em Moema a maioria dos habitantes é branca e o bairro tem toda infra-estrutura urbana, serviços, escolas tudo que falta na periferia. Em Perus, o bairro tem toda a carência da periferia. Bem, o que acontecerá com os dois bairros aplicando-se estas políticas de cotas?

Possivelmente, e se tudo der certo, alguns negros vão morar em Moema. E em Perus tudo continuará igual para os negros e brancos pobres. Continuará a faltar serviços públicos, saúde, educação, emprego etc, ou seja, nada vai mudar!"

Cotas não resolvem o problema do povo negro e pobre das periferias deste país! E nem corrige as distorções, pois elas são fruto das próprias desigualdade da sociedade em que vivemos, uma sociedade de classes.

Por isso a cada dia, mais negros e brancos pobres, descobrem esta fraude contra as necessidades das maiorias oprimidas e começam a se mobilizar. Não aceitaremos está divisão, não aceitaremos está armadilha e somos incondicionais pela recusa destes dois Projetos de Lei. E para o movimento negro é muito importante que estejamos encontrando, e nos unindo com parcelas cada dia maior de intelectuais, artistas sindicalistas e democratas para barrar estas aberrações políticas e jurídicas. Nós estamos por uma frente única com todos os setores da nação que concordem com este ponto. Nós não impomos nada a ninguém para além do acordo neste ponto para realizar este combate. Nossa luta contra o racismo existente já é muito dolorosa para permitir que um mal maior se faça. Todos juntos para barrar estes projetos.

Como terminar com o racismo no Brasil, que existe e se expressa na violência policial, na discriminação e nas mortes de negros, no "Caveirão" da polícia do RJ é outra discussão e cada um pode ter sua opinião. A nossa é de que o racismo é uma arma dos capitalistas e que por isso só uma profunda modificação social assentará as bases para começar a resolver a questão.

Em conclusão

Segundo os defensores das cotas elas gerarão cerca de 27 mil vagas para negros, nas universidades publicas federais. Acredite, é só isso mesmo e pode até ser menos. E estamos no Brasil de 125 milhões de eleitores e 180 milhões de habitantes cuja maioria é muito pobre e onde cerca de 45 milhões ainda não se alimentam direito.

Se levarmos em conta os dados do IBGE, nós, os negros, somos metade da população. Estas cotas, evidentemente, são apenas um "cala boca" para não lutarmos por mais vagas, por vagas para todos.

Eles só podem defender este dito Estatuto da Igualdade Racial e o PL de Cotas sob a base da manipulação e da dubiedade, da "pegadinha". Uma pesquisa do Jornal Folha de São Paulo (julho/2007) dizia que apesar de somente 9% dos entrevistados se sentirem esclarecidos o suficiente a respeito do Estatuto, 65% deles eram a favor das cotas para que os negros tenham acesso à universidade.

É evidente que o povo brasileiro deseja que os negros tenham acesso à universidade. Mas, a pesquisa é um beco sem saída. Imagine qual seria a resposta se a pergunta fosse:

"Você é a favor de cotas ou de vagas para todos?"

Nós não podemos deixar de insistir para que os recursos nacionais sejam investidos maciçamente em serviços públicos, em saúde, em educação, na criação de empregos na reforma agrária para que um dia nossos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade se realizem plenamente.

É por isso que o Movimento Negro Socialista (MNS) não vai desistir de sua luta para barrar estes dois PL's. Esta luta contra o dito Estatuto da Igualdade Racial e o PL de Cotas é uma etapa de nossa luta contra o racismo. Pois para nós a luta contra o racismo é também a luta contra a sociedade desigual que o inventou e que o perpetua. É, portanto uma luta dos negros, brancos, mestiços, índios, enfim de todos oprimidos. Como afirmava Steve Bantu Biko, "Racismo e capitalismo são as duas faces da mesma moeda".