As fissuras cada vez maiores nas relações mundiais e a tarefa dos comunistas

A crise do capitalismo é também a crise da ordem mundial após a queda da União Soviética, baseada na dominação do imperialismo norte-americano. Com a ascensão da China como potência mundial, com a Rússia assumindo uma postura cada vez mais desafiadora internacionalmente e com os EUA incapazes de intervir militarmente em grande escala, seu poder de polícia mundial não carrega mais o mesmo peso nem garante a obediência que antes garantia. Isso tem grandes implicações para o equilíbrio de poder no cenário mundial.

No Iraque, Afeganistão e Síria, os EUA foram derrotados. Na Líbia, foi flanqueado. Enquanto isso, potências de segunda categoria, muitas delas aliadas de longa data dos EUA, divergiram cada vez mais dos desejos de Washington.

Na guerra da Ucrânia, os americanos viram uma oportunidade de enfraquecer a Rússia, que é a mais poderosa aliada de seu principal rival, a China. Mas um homem preso na areia movediça não pode se mover, dizem. Em vez de restaurar a posição do imperialismo norte americano, a guerra exacerbou as contradições nas relações mundiais e minou ainda mais a autoridade norte americana.

Tudo isso anuncia um novo período de maior instabilidade e conflito entre as nações. Para os comunistas, isso sublinha o impasse do capitalismo e a necessidade de uma determinada luta internacional de classe pelo socialismo.

Guerra da Ucrânia – jogando lenha na fogueira

Desde a eclosão da guerra por procuração entre o imperialismo norte americano e a Rússia na Ucrânia, a máquina de propaganda da imprensa ocidental tentou pintar o seguinte quadro: de um lado está a Rússia, o pária, isolada e sozinha. Do outro lado está o mundo inteiro, com os EUA à frente, unidos na condenação do tirano no Kremlin.

No entanto, se arranhamos a superfície dessa exibição cuidadosamente encenada, rapidamente encontraremos emergindo uma imagem totalmente diferente. Os objetivos dos Estados Unidos na guerra da Ucrânia eram isolar e paralisar seu rival russo de uma só vez, enfraquecendo as relações entre a Rússia e a Europa, estreitando assim seu domínio sobre esta última. “Vamos arrastar a Rússia para um pântano”, disseram políticos ocidentais triunfantes uns aos outros.

“A Rússia de Putin não é nossa amiga e é a aliada mais poderosa da China”, escreveu recentemente o ex-candidato presidencial republicano Mitt Romney. “Apoiar a Ucrânia enfraquece um adversário, aumenta nossa vantagem de segurança nacional e não requer derramamento de sangue americano.”

Com isso em mente, o Ocidente, liderado pelos EUA, despejou grandes quantidades de armas na Ucrânia e forneceu-lhe uma grande quantidade de assistência direta militar, econômica e de inteligência. Ao mesmo tempo, impuseram uma série de sanções à Rússia: as mais severas aplicadas a qualquer país desde a Segunda Guerra Mundial.

A Rússia foi excluída dos investimentos ocidentais, foi-lhe negado o acesso a tecnologias avançadas e foi bloqueada do sistema bancário eletrônico SWIFT. 400 bilhões de dólares de seus ativos do banco central foram congelados e foi realizada uma campanha para cortar seu fluxo de gás para a Europa.

Mas, como veremos, essas políticas agora estão saindo pela culatra, e a classe dominante dos EUA está tendo que enfrentar seu próprio pântano. Em entrevista à Bloomberg, o ex-secretário do Tesouro Larry Summers disse o seguinte:

“Há uma aceitação crescente da fragmentação e – talvez ainda mais preocupante – acho que há uma sensação crescente de que o nosso fragmento pode não ser o melhor para se associar. Estamos do lado certo da história – com nosso compromisso com a democracia, com nossa resistência à agressão da Rússia, mas parece ser um pouco solitário estar do lado certo da história, pois aqueles que parecem estar muito menos do lado certo da história estão cada vez mais unindo-se em toda uma gama de estruturas”.

Olhando além da frase hipócrita sobre “o lado certo da história”, encontramos um alerta ameaçador na declaração acima, vindo de um sério estrategista burguês.

Embora o desgaste no campo de batalha ainda não leve a guerra a um ponto de inflexão claro para um lado ou para o outro, a realidade política no cenário mundial não está se moldando conforme os objetivos de guerra do imperialismo norte americano.

É claro que além do Ocidente e do Japão, grande parte, senão a maioria, das classes dominantes das várias nações do mundo, não tem interesse em ser arrastado para o conflito da Ucrânia ao lado do Ocidente.

Muito mais do que isolar a Rússia, de fato, as ações dos EUA aprofundaram as tensões existentes nas relações mundiais, destacaram os limites do poder dos EUA e enfraqueceram sua autoridade.

Tiro pela culatra

Um artigo recente na revista de direita britânica The Spectator afirmou o seguinte:

“O Ocidente embarcou em sua guerra de sanções com um senso exagerado de sua própria influência em todo o mundo. Como descobrimos, os países não ocidentais carecem de vontade de impor sanções à Rússia ou aos oligarcas russos. Os resultados do erro de cálculo estão aí para todos verem.

“Em abril do ano passado, o FMI previu que a economia russa encolheria 8,5% em 2022 e mais 2,3% este ano. Como se viu, o PIB caiu apenas 2,1% no ano passado, e este ano o FMI prevê um pequeno aumento de 0,7%. E isso tudo apesar de a guerra na Ucrânia estar indo muito pior do que muitos imaginavam em fevereiro do ano passado.

“A economia russa não foi destruída; foi apenas reconfigurada, reorientada para olhar para o leste e para o sul, em vez de para o oeste.”

Embora seja verdade que alguns setores da economia russa foram atingidos e sofrem com a escassez de certos componentes avançados, as sanções não atingiram o que o Ocidente pretendia: paralisá-la ao ponto de que prosseguir com a guerra na Ucrânia se tornasse insustentável.

Os preços crescentes das exportações de hidrocarbonetos, em grande parte redirecionados para Índia e China, mantiveram a economia russa à tona. E a Rússia conseguiu obter acesso a tecnologias avançadas por meio de terceiros, como China, Turquia e países do Golfo.

A recente viagem do primeiro-ministro chinês Xi Jinping a Moscou foi uma demonstração pública de apoio a Putin e um desafio aberto às tentativas do imperialismo americano de isolá-lo. A imagem divulgada pela mídia do isolamento total da Rússia estourou como uma bolha de sabão. O comércio entre os dois países aumentou 40% no ano passado. Claramente, a Rússia teria considerado muito difícil continuar sua campanha militar na Ucrânia se não fosse pelo apoio que recebeu de Pequim.

Até agora, a China não forneceu armas à Rússia para uso na Ucrânia, pelo menos não tanto quanto é de conhecimento público. Mas ultrapassou a Europa como o maior importador de petróleo bruto russo. Além disso, tornou-se um meio vital para a Rússia contornar as sanções à importação de bens essenciais, como circuitos integrados.

Em vez de isolar a Rússia e, assim, permitir que o imperialismo norte americano se concentre em seu principal rival, as ações de Washington empurraram a Rússia para os braços do regime do PC Chinês: uma aliança que agora é um problema crescente para os americanos.

Resto do mundo incomodado

Mais longe, as coisas não parecem muito melhores para os EUA.

Em outubro, a ONU condenou os referendos de anexação da Rússia nas regiões que controlava na Ucrânia por 143 votos a cinco. Este resultado foi alardeado pelo Ocidente: “Viu? Vejam como a Rússia está no cenário mundial. Está totalmente isolada.”

Mas até a revista Time foi forçada a admitir que a votação da ONU na realidade mostrou que “a Rússia não está tão isolada quanto o Ocidente gostaria de pensar”, já que os 35 países que se abstiveram, incluindo China e Índia, representam quase metade da população mundial. Apesar do grande número de abstenções, o problema com essa alegação é o seguinte: as resoluções da ONU consistem inteiramente em palavras. Mas, na política, são os fatos e apenas os fatos que contam.

Quando olhamos para os fatos, uma história totalmente diferente emerge.

Um artigo interessante no The Economist – intitulado “Como sobreviver a uma divisão da superpotência” – encontrou que apenas 52 países (descritos como “o Ocidente e seus amigos”) estão preparados para “repreender e punir as ações da Rússia” (grifo nosso). Enquanto isso, 127 estados falharam em se alinhar claramente de uma forma ou de outra e estão efetivamente ajudando a Rússia a minimizar o impacto das sanções.

A Turquia, um importante membro da OTAN, desempenhou um papel particularmente crucial para a Rússia, ajudando-a a contornar as sanções.

O presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, elogiou o “relacionamento especial” do país com a Rússia e se recusou a impor as sanções ocidentais a Moscou. Nos primeiros seis meses após o início da invasão russa, as exportações turcas para a Rússia aumentaram 45% e as importações, 125%.

A Arábia Saudita, outro aliado tradicional dos Estados Unidos, também desafiou os imperialistas ocidentais ao chegar a um acordo com a Rússia para cortar a produção de petróleo em 5%, mantendo os preços do petróleo e do gás elevados em meio à recessão global. A indignação de Washington com esse movimento foi recebida com pouco mais do que um encolher de ombros em Riad.

Israel também, apesar de ser a principal ponte do imperialismo dos EUA no Oriente Médio, assumiu uma postura mais ou menos neutra em relação à Guerra da Ucrânia, recusando-se a vender armas à Ucrânia ou a implementar sanções.

Na América Latina, Brasil, Argentina, México, Chile e até a Colômbia, ex-aliada dos Estados Unidos, resistiram à pressão de seu poderoso vizinho ao se recusarem a fornecer armas à Ucrânia.

Após sua viagem à China em abril, o presidente do Brasil, Lula, atacou o Ocidente por prolongar a guerra enviando mais armas para a Ucrânia, afirmando que:

“[Os Estados Unidos] precisam parar de encorajar a guerra e começar a falar em paz, a União Europeia precisa começar a falar em paz para que possamos convencer Putin e Zelensky de que a paz é do interesse de todos e que a guerra é apenas do interesse dos dois.”

Em outros lugares, a Índia ajudou os russos a compensar quase todas as vendas perdidas de gás e petróleo. A Índia tem suas próprias razões para manter relações amistosas com a Rússia. Mas os preços abaixo do mercado para o gás e o petróleo russos certamente facilitam o negócio. Suas importações de petróleo da Rússia aumentaram 22 vezes desde o início da guerra. Na verdade, a Índia está até refinando e reexportando alguns desses hidrocarbonetos, como o diesel, para o mercado europeu!

A Rússia também continua sendo o maior fornecedor de defesa da Índia, com planos de ampliar a gama de armas para incluir os sistemas de defesa aérea russos mais avançados.

O governo sul-africano também minimizou os protestos dos EUA sobre a realização de exercícios navais conjuntos com a China e a Rússia em sua costa leste em fevereiro. E acaba de outorgar imunidade diplomática a Putin, permitindo-lhe assim comparecer à cúpula do BRICS na África do Sul, desafiando abertamente um mandado de prisão do TPI contra ele.

A Guerra da Ucrânia aumentou significativamente o preço do petróleo, gás, alimentos e fertilizantes. Todos esses produtos são particularmente sensíveis em países pobres, onde milhões de pessoas estão caindo na miséria devido à crise econômica mundial. Em toda a África, assim como na América Latina, as exportações russas de grãos e fertilizantes têm aumentado.

Para evitar uma explosão social, muitos países preferem negociar com a Rússia, que pode oferecer esses produtos a preços abaixo do mercado, do que impor sanções, o que só aumentará ainda mais os preços.

Os exemplos continuam. Com a economia mundial no limite e as tensões aumentando em todos os níveis, o custo de seguir cegamente os EUA no beco sem saída de mais um conflito desestabilizador é simplesmente demais para as classes dominantes na maioria dos países.

Europa

De fato, mas só no papel, a Europa Ocidental parece ser a única região que segue fielmente os ditames do imperialismo norte-americano. Mas mesmo aqui, a imagem rósea de uma "aliança ocidental" harmoniosa e unida está manchada por antagonismos crescentes.

A Guerra da Ucrânia atingiu duramente a economia da UE, privando-a do gás russo barato. Isso prejudicou a competitividade da UE, em particular do capitalismo alemão e francês, no mercado mundial. É por isso que todos os principais países da UE ficam arrastando os pés sempre que se fala em enviar armas para a Ucrânia ou impor novas sanções à Rússia.

Nesse ínterim, os americanos aprovaram a Lei de Redução da Inflação: um pacote de 400 bilhões de dólares destinado principalmente a apoiar empresas americanas e minar os capitalistas europeus. Washington também está tentando arrastar a Europa para mais fundo em seu conflito com a China, que passou a ser o principal parceiro comercial da Europa.

Apesar de todas as críticas a Donald Trump, o governo Biden está de fato dando continuidade à política de Trump de “América em primeiro lugar”, para grande consternação dos aliados tradicionais da América.

Em uma tentativa de mostrar alguma independência, o chanceler alemão Olaf Scholtz visitou a China em novembro. A visita causou grande comoção e quase derrubou o governo, já que o belicista ministro das Relações Exteriores, do partido verde, Baerbock, agindo como agente direto do imperialismo dos EUA dentro do gabinete de coalizão, ameaçou renunciar.

A viagem de Scholtz foi seguida nesta primavera pela destacada visita do presidente francês Emmanuel Macron a Pequim. Isso claramente aumentou o atrito entre os EUA e seus principais aliados europeus.

Numa facada velada pelas costas contra os EUA, Macron disse que seria “uma armadilha para a Europa” ser apanhada em crises que não são da Europa, e que tal coisa essencialmente transformaria os países europeus em “vassalos”. As observações de Macron estavam especificamente dirigidas ao conflito entre os EUA e a China, mas ele claramente também estava de olho na Ucrânia.

Acompanhando Macron em sua viagem estava uma série de líderes empresariais – destacando a importância econômica do comércio francês com a China, com quem ele esperava fechar negócios.

O mais irritante para os estrategistas do imperialismo estadunidense foi o acordo fechado pela Airbus, de propriedade francesa e europeia, que anunciou a venda de 200 jatos de passageiros para a China; um acordo sobre helicópteros; bem como a abertura de uma nova fábrica da Airbus em Tianjin. Com a China sendo o mercado que mais cresce no mundo para aeronaves comerciais, tal acordo é um golpe direto contra os interesses da Boeing, uma empresa americana. Isso também resultará no tipo de compartilhamento de tecnologia ao qual o imperialismo dos EUA se opõe veementemente.

A classe dominante francesa sempre teve suas próprias ambições na arena mundial e pretende desempenhar um papel mais independente. Por exemplo, suas armas nucleares estão fora do controle da OTAN. Além disso, o imperialismo francês tem seus próprios interesses, particularmente na África. Apesar de seu peso limitado nas relações internacionais, a França tenta se equilibrar entre os EUA e a China para obter um certo grau de autonomia para si. Enquanto isso, é claro, o regime chinês está interessado em explorar as contradições entre a UE e os EUA em benefício próprio.

Enquanto a viagem de Macron foi parcialmente planejada como um meio de desviar a atenção do movimento de protesto em massa contra as reformas previdenciárias na França, suas declarações são claramente representativas do pensamento de uma ala da burguesia da Europa Ocidental, que tem muito a perder e pouco a ganhar em seguir cegamente Washington em seus conflitos na arena mundial.

A União Europeia foi forjada como um meio de unificar as nações que não podiam desempenhar um papel independente no cenário mundial. Hoje, está paralisada pelas contradições entre as nações que a compõem – contradições que são constantemente exploradas pelas maiores potências imperialistas.

Fragmentação

Por um longo período após a Segunda Guerra Mundial, as relações mundiais permaneceram relativamente estáveis, pois duas grandes superpotências de força semelhante (e com armas nucleares) se enfrentavam. Esse equilíbrio relativo foi destruído pelo colapso do stalinismo em 1989-91.

Após a queda da União Soviética, os EUA permaneceram como a única superpotência do planeta. Como Ícaro na mitologia grega, que voou muito perto do sol, imaginou que não havia limite para o seu poder. Interveio em um país após o outro para punir qualquer desobediência e encontrou pouca resistência. Na época da guerra imperialista de 1991 no Golfo, por exemplo, a China e a Rússia simplesmente se abstiveram no conselho de segurança da ONU que autorizou o uso da força contra o Iraque. Falou-se até que a Rússia seria convidada a ingressar na OTAN. A Rússia foi humilhada pela OTAN no incidente do aeroporto de Pristina, em Kosovo, em 1999.

Mas com a virada do século e as invasões do Iraque e do Afeganistão, a maré começou a virar. As derrotas nessas guerras mostraram os limites do país mais poderoso do mundo. Mais importante, elas levaram a uma oposição generalizada entre a classe trabalhadora americana a qualquer outra aventura militar.

Consequentemente, não foi mais possível para os EUA enviar tropas e entrar em guerras abertas em larga escala. De fato, em 2014, Barack Obama nem conseguiu que o Congresso aprovasse uma campanha limitada de bombardeio contra o regime de Assad na Síria.

Essa debilidade reduziu significativamente a capacidade dos Estados Unidos de utilizar o seu poder. Na Síria, por exemplo, vimos como a Rússia e o Irã conseguiram derrotar a coalizão liderada pelos EUA. Da mesma forma, na Líbia, as potências ocidentais foram completamente postas à margem por milícias alinhadas com a Rússia e por aquelas que se inclinavam para a Turquia.

Junto com a derrota efetiva no Iraque e a retirada humilhante do Afeganistão, estes foram grandes golpes para a autoridade dos EUA.

Um processo paralelo vem ocorrendo no plano econômico e diplomático.

Logo após a Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos representavam 40% do PIB mundial. Com base nisso, e com o “livre comércio” como seu principal slogan, Washington derrubou as barreiras comerciais e abriu o mercado mundial, sob a governança de instituições norte americanas como o FMI e o Banco Mundial. O dólar se estabeleceu como a moeda estável do comércio mundial, que se expandiu enormemente.

Mas hoje, a participação relativa dos EUA no PIB mundial caiu para 24%, enquanto a China aumentou de uma quantidade insignificante para 15%. A China está longe de ultrapassar os EUA no plano econômico. Mas a sua ascensão significou uma redução do peso relativo desta última na economia mundial.

Ao mesmo tempo, a crise econômica mundial aumentou as tensões entre as nações. Assim, para defender sua posição, o capitalismo dos Estados Unidos deixou de ser o maior defensor do livre comércio para se tornar a maior força do protecionismo.

A guerra comercial contra a China, iniciada pelo governo Trump, continua inabalável durante a presidência de Biden. Os EUA também estão tomando medidas para garantir a capacidade produtiva doméstica. Enquanto isso, o dólar – e os sistemas financeiros baseados no dólar, como o SWIFT – estão sendo adaptados ao uso como armas para atacar aqueles que se atrevam a criar obstáculos aos EUA.

Isso abalou a confiança na ordem mundial do período pós-soviético. Se os ativos russos podem ser congelados da noite para o dia, quem pode ser o próximo?

Trotsky observou certa vez que o imperialismo britânico, em seu auge, costumava pensar em termos de séculos e na escala de continentes. O imperialismo estadunidense também, em seu período ascendente, pelo menos tentou olhar para a frente antes de agir.

Hoje, porém, a burguesia norte-americana se caracteriza por extrema miopia e estupidez. Isso em si é um reflexo da crise orgânica do capitalismo e da dominação do capital financeiro e do mercado de ações, que não vê nada além da próxima bolha especulativa ou, na melhor das hipóteses, do próximo relatório trimestral.

Em um período de crise generalizada do capitalismo, manter o status quo é o caminho mais benéfico a seguir. Mas o status quo tornou-se insustentável de manter.

Assim, como um elefante bêbado, o imperialismo estadunidense está cambaleando na arena internacional, sem um plano claro. Ao fazê-lo, está minando a ordem mundial, que se baseava na sua própria dominação absoluta após a queda da União Soviética. A Guerra da Ucrânia e as sanções à Rússia aceleraram esse processo.

Não se enganem, no momento não há força que possa desafiar o poder global dos EUA nas esferas militar ou econômica. A produtividade do trabalho nos EUA ainda está bem à frente da produtividade chinesa (embora a diferença esteja diminuindo). Os gastos militares dos EUA também são maiores do que os gastos militares das dez próximas nações juntas, representando 54% do total de gastos militares em todo o mundo. Mas estão aparecendo rachaduras na ordem mundial dominada pelos EUA – rachaduras pelas quais potências menores como a China e, até certo ponto, também a Rússia estão se infiltrando, aumentando a instabilidade existente.

A China e os BRICS

Os chineses exploraram efetivamente a sensação de crescente insegurança nas relações mundiais. Em sua viagem a Moscou, Xi Jinping evitou a fanfarronice dos EUA sobre as “linhas vermelhas” na ajuda militar à Rússia. Em vez disso, ele veio armado com um plano de paz.

Suas chances de êxito são próximas de zero, mas não era esse o propósito. A intenção era enviar uma mensagem para o resto das nações do mundo: “O que seu abraço aos EUA trouxe para você, exceto instabilidade e guerra? Abrace-nos e você terá paz, estabilidade e comércio.”

A mensagem explora habilmente um sentimento de profunda consternação – afetando inimigos e aliados tradicionais dos EUA – em todo o mundo.

Em março, a China mediou um acordo entre a Arábia Saudita e o Irã, que há anos competem por influência no Oriente Médio. Este foi um grande golpe para a posição dos EUA, que foi a principal potência no Oriente Médio por décadas e o principal patrono do regime saudita.

A Arábia Saudita também recebeu o status de parceiro de diálogo na Organização de Cooperação de Xangai (SCO) – um órgão político e econômico liderado pela China e apoiado pela Rússia. Comentando sobre este passo, um analista saudita, Ali Shihabi disse que:

“A tradicional relação monogâmica com os EUA acabou. E entramos em um relacionamento mais aberto; forte com os EUA, mas igualmente forte com a China, Índia, (o) Reino Unido, França e outros.”

Muitas potências menores estão aproveitando a grande divisão de poder para avançar pelas brechas. Nas palavras do presidente brasileiro Lula da Silva em sua visita a Pequim, eles gostariam de trabalhar com os EUA e a China para “equilibrar a geopolítica mundial”.

“Equilibrar” é uma boa maneira de colocar isso. A classe dominante brasileira não pode se dar ao luxo de virar as costas totalmente para os EUA. Mas também não vai ceder a todas as exigências do governo dos EUA, como vimos na recusa do Brasil em enviar armas para a Ucrânia. Da mesma forma, enquanto esteve na China, Lula teve a ousadia de visitar a fábrica da Huawei, que produz equipamentos 5G proibidos pelos EUA. O grande setor do agronegócio brasileiro também depende de fertilizantes russos.

Países como Brasil, África do Sul e Índia há muito são grandes e poderosos o suficiente para adotar uma linha semi-independente em algumas questões, sem virar completamente as costas para o imperialismo ocidental.

De fato, o chamado agrupamento BRICS há muito forma um bloco semiformal, como um contrapeso autodeclarado ao G7 do Ocidente, com Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul como membros fundadores.

Mas, segundo o ministro dos Negócios Estrangeiros sul-africano, nada menos que 12 países têm candidaturas pendentes para aderir à associação. Muitos dos que batem à porta para se juntar incluem nações que têm sido mascotes do imperialismo norte americano há décadas, incluindo Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e Egito.

A ascensão da China certamente está afrouxando o domínio dos EUA em diferentes partes do mundo. Mas seria errado imaginar que a China está a caminho de substituir ou mesmo igualar seu poder globalmente.

Só considerando o plano militar, existe uma enorme disparidade entre os dois. A economia dos EUA, além disso, é muito maior e mais avançada. E comanda um controle decisivo sobre as principais alavancas da economia mundial.

Além disso, é claro que a própria China se prepara para uma crise econômica sem precedentes – e, a ela ligada, um período de profundas convulsões sociais, que frearão a trajetória que o país tomou no período passado.

A luta contra o imperialismo e as tarefas dos comunistas

Em 1928, quando o imperialismo americano ainda estava em seu período de expansão, Leon Trotsky escreveu o seguinte:

“...é precisamente a força internacional dos Estados Unidos e a irresistível expansão dela decorrente, que a obriga a incluir os barris de pólvora de todo o mundo nas bases de sua estrutura, ou seja, todos os antagonismos entre o Oriente e o Ocidente, a luta de classes na Velha Europa, as revoltas das massas coloniais e todas as guerras e revoluções.

“Por um lado, isso transforma o capitalismo norte-americano na força contra revolucionária básica da época moderna, cada vez mais interessada na manutenção da 'ordem' em todos os cantos do globo terrestre; e, por outro lado, isso prepara o terreno para uma gigantesca explosão revolucionária neste poder imperialista mundial já dominante e ainda em expansão.”

Essas palavras são ainda mais verdadeiras hoje do que quando foram escritas. O imperialismo dos EUA é a força mais reacionária do planeta. Seus tentáculos econômicos, militares, diplomáticos e culturais se estendem profundamente em quase todos os países. E representa uma ameaça para a classe trabalhadora onde quer que as massas comecem a se mover para a revolução de maneira decisiva.

Ao mesmo tempo, a ascensão do capitalismo americano criou a classe trabalhadora mais poderosa do mundo, capaz de determinar o curso da história. A luta contra o imperialismo é parte integrante da luta da classe trabalhadora pelo socialismo.

Dentro dos EUA, as noções da chamada Pax Americana e do “Século Americano” têm sido poderosas ferramentas de propaganda nas tentativas da classe dominante dos EUA de atalhar a luta de classes. Mas hoje, a mentira cínica dos “mocinhos” americanos espalhando a “democracia” pelo mundo está manchada e exposta como o chamado Sonho Americano.

A cada revés e derrota para o imperialismo dos EUA, a posição da classe dominante é ainda mais enfraquecida em casa, em benefício da classe trabalhadora.

A tarefa dos comunistas, em cada etapa, é desenvolver uma posição independente para a classe trabalhadora. Devemos expor toda a conversa hipócrita e cínica do establishment sobre defender a “democracia” e “enfrentar homens fortes” como Putin, como nada mais além de uma cortina de fumaça destinada a encobrir os estreitos interesses predatórios dos capitalistas.

Basta mencionar os milhões de vidas perdidas nas guerras do Oriente Médio nas últimas décadas; a sangrenta dissolução da Iugoslávia; a pilhagem da Rússia e da Europa Oriental na década de 1990; o estrangulamento que o Ocidente mantém sobre a África; o desencadeamento do fundamentalismo islâmico; as mudanças de regime, golpes e contrarrevoluções à custa de milhões de vidas, a política secular de apoiar golpes militares, apoiar ditadores sangrentos e derrubar governos progressistas na América Latina. A lista continua e continua.

Este histórico bárbaro das potências ocidentais no século passado semeou um ódio profundo contra o imperialismo entre as nações oprimidas coloniais, semicoloniais e ex-coloniais.

A tarefa de derrubar o regime reacionário de Putin é dos trabalhadores russos. A tarefa da classe trabalhadora americana é lutar contra sua própria classe dominante, que tem sido a maior inimiga de todos os movimentos revolucionários genuínos ao redor do mundo por décadas. Sem isso, não se pode falar de nenhuma verdadeira unidade internacional da classe trabalhadora.

Mundo multipolar

Há quem defenda, porém, que, uma vez que nos opomos ao imperialismo ocidental, devemos apoiar os seus concorrentes.

A chamada teoria do mundo multipolar, que se oferece sob muitas formas e tamanhos, sugere que devemos lutar por um mundo dominado por múltiplas potências imperialistas que se equilibrem, em oposição ao atual que é dominado por uma única superpotência.

No prefácio de seu livro Beyond US Hegemony?: Assessment the Prospects for a Multipolar World in 2006, Samir Amin escreveu:

“[Eu] quero ver a construção de um mundo multipolar, e isso obviamente significa a derrota do projeto hegemônico de Washington para o controle militar do planeta. A meu ver, trata-se de um projeto arrogante, criminoso por sua própria natureza, que está arrastando o mundo para guerras sem fim e sufocando toda esperança de avanço social e democrático, não apenas nos países do Sul, mas também, aparentemente em menor grau, nas do Norte.”

Hoje, essa ideia está ganhando força renovada entre alguns setores da esquerda internacionalmente, que acreditam que devemos apoiar a ascensão da China e a reentrada da Rússia como potência na arena mundial.

Em um mundo tão multipolar, continua o argumento, o imperialismo chinês e russo e talvez o de outros países como a Índia e o Brasil manteriam o império dos EUA sob controle, levando a um mundo mais pacífico e mais justo. Embora, as razões dessas potências estarem mais interessadas em paz e “justiça” do que os EUA, nunca sejam explicadas.

Aqui temos a essência concentrada da velha teoria da frente popular (embora em escala internacional!), há muito defendida pelos stalinistas em seu apogeu.

Em vez de esclarecer as contradições de classe entre os trabalhadores e os capitalistas, esta posição confunde as linhas de classe e tenta empurrar a classe trabalhadora para trás de um bloco imperialista – ainda que mais fraco – contra outro.

Em vez de aprofundar a luta contra o capitalismo, isso semeia ilusões sobre a possibilidade de uma solução dentro dos limites do sistema atual.

A Rússia e a China podem ser potências menores que os EUA. Mas isso não torna Putin e Xi nem um pouco mais progressistas. Estes são regimes capitalistas, baseados na exploração da classe trabalhadora. Eles são os inimigos dos trabalhadores e dos pobres.

E embora não seja tarefa do proletariado ocidental derrubá-los, certamente é tarefa dos trabalhadores russos e chineses. Para eles, não há como avançar dentro dos estreitos limites do capitalismo.

A fim de atalhar a luta de classes, no entanto, e reunir a nação por trás de seus regimes, tanto Xi quanto Putin se baseiam demagogicamente na ameaça do imperialismo dos EUA e nos sentimentos anti-imperialistas dos trabalhadores russos e chineses. Em outras palavras, a ameaça do imperialismo dos EUA é usada para subjugar os trabalhadores russos e chineses.

Em vez de semear ilusões nesses regimes, o dever dos comunistas é expor essa demagogia e mostrar como os interesses desses regimes se opõem diretamente aos dos trabalhadores e dos pobres.

Felizmente para nossos amigos “multipolares” da esquerda, sua ideia foi endossada por Vladimir Putin e Xi Jinping em seu recente encontro em Moscou. Aqui eles delinearam sua intenção de “promover uma ordem mundial multipolar, globalização econômica e democratização das relações internacionais” e “promover o desenvolvimento da governança global de maneira mais justa e racional”.

Seu conflito com o imperialismo ocidental tem uma natureza de classe totalmente diferente do anti-imperialismo das massas.

Quando Xi e Putin falam de “globalização econômica e democratização das relações internacionais” e de um “desenvolvimento de governança global” mais justo, o que eles querem dizer não é o fim do imperialismo e da opressão nacional, mas um novo cenário de relações mundiais – um novo cenário onde suas respectivas classes dominantes recebem uma fatia maior do bolo, que eles acreditam estar sendo engolido pelo Ocidente.

O que a China busca são campos de investimento, fontes de matérias-primas e energia e o controle das rotas comerciais, tudo no interesse dos capitalistas chineses. Esta não é uma verdadeira luta contra o imperialismo. É apenas uma oferta para substituir um imperialismo por outro.

Para que as massas da Rússia e da China realmente lutem contra o imperialismo, elas devem primeiro tomar o poder em suas próprias mãos e vincular sua luta à dos trabalhadores do Ocidente. Somente nessas condições pode começar uma luta genuína, internacional e anti-imperialista.

Trabalhadores do mundo uni-vos!

O século 21 foi anunciado como o Novo Século Americano. Quando os EUA gritavam “Pule!”, o mundo respondia em coro: “A que altura?” Mas esse coro já não goza da unanimidade de outrora.

À medida que novas potências entram em cena e os limites do poder dos EUA são revelados, as potências regionais estão tentando ampliar sua influência e estabelecer um curso mais independente. Os americanos estão descobrindo que aliados anteriormente leais agora pensam que podem obter o melhor dos dois mundos equilibrando-se entre os EUA, de um lado, e a China e a Rússia, do outro.

Nesse novo equilíbrio de forças, com a autoridade dos Estados Unidos minada, mas sem nenhum concorrente viável como potência econômica e militar dominante no mundo, veremos novos embates.

Em vez de uma era de paz, este novo mundo “multipolar” verá uma competição cada vez mais acirrada entre potências imperialistas menores, buscando flexionar seus músculos.

Nesses confrontos, as nações menores serão esmagadas política e economicamente; ou como vimos nos casos da Líbia, Síria e Ucrânia, militarmente.

Este será um período de extrema turbulência, com “pequenas” guerras e conflitos por procuração – todos os quais irão alimentar e se combinar com a crise geral do sistema capitalista.

Isso coloca urgentemente a tarefa de uma luta internacional para acabar com esse sistema moribundo de uma vez por todas: para inaugurar uma ordem socialista mundial, sem as restrições sufocantes do lucro e do Estado-nação.

A Corrente Marxista Internacional é uma organização comunista revolucionária em mais de 40 países ao redor do mundo. Junte-se a nós e à luta pela revolução socialista em seu país e no mundo.

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